CORRUPÇÃO: UMA ANALISE FRIA
Por Alacir Arruda
Segundo o ex Ministro Joaquim
Barbosa –STF, “ a corrupção no Brasil esta na base de todas as nossas
instituições”. Essa fala analisada friamente é preocupante, mas sem o componente
da novidade. A Deputada Cidinha Campos do Rio de Janeiro, em uma de
suas falas na assembléia legislativa daquele Estado asseverou: “ a corrupção esta
no DNA do Brasileiro”. Frases à partes, o que explica esse fenômeno tão nosso?
As denúncias de corrupção que assolam o
governo Dilma, com fundamentos diga se de passagem, nesse seu segundo
mandato da forma como tem sido
divulgadas pela grande mídia passa a idéia aos menos informados como se fossem uma característica do atual
agrupamento político que está no poder. Tudo se passa como se pessoas de
caráter duvidoso se aproveitassem do Estado em favor de seus interesses
pessoais e grupais como se fossem uma característica do atual agrupamento
político que está no poder.
Essa forma de veicular
denúncias e indícios e, sobretudo, de interpretá-los, não apenas contribui para
estigmatizar grupos políticos – no limite de sua criminalização, o que é um
claro atentado à democracia – como, fundamentalmente, reafirma muitos dos mitos
acerca do fenômeno da corrupção.
Deve-se notar que tais mitos
são de variada ordem e se encontram espalhados pelo chamado senso comum e entre
as elites, a começar pela mídia, que os espraia seletivamente. Sem a pretensão
de esgotar todos eles, podem-se inventariar alguns:
• a colonização
portuguesa, que seria essencialmente patrimonialista, em contraposição ao
“poder local” e ao “espírito de comunidade” da tradição anglo-saxã,
notabilizada por Tocqueville. Nessa imagem, haveria uma “inferioridade” da
cultura e dos povos ibéricos, comparativamente a seus congêneres anglo-saxões,
com conseqüências políticas nefastas a suas colônias. Assim, o patrimonialismo
seria um legado do qual as ex-colônias jamais conseguiriam se livrar;
• a cultura brasileira,
que não teria, mesmo após a independência e a República, conseguido separar o
público do privado, mantendo as “raízes do Brasil”, conforme a análise
culturalista de Sérgio Buarque de Holanda. Aqui, o universo miscigenado
brasileiro, tão criticado por perspectivas eugenistas do início do século XX e
mesmo por pensadores como Oliveira Viana, impregnaria as instituições com sua
“amoralidade macunaímica” (a obra de Mario de Andrade é, nesse sentido,
ironicamente sintética e crítica dessa perspectiva);
• o caráter (i)moral de
grupos específicos que alçam ao poder, versão notabilizada pela UDN de
Carlos Lacerda, intérprete da política à luz da moral (seletiva, diga-se) das
relações pessoais: essa versão é bastante divulgada pela mídia contemporânea
brasileira, com a mesma seletividade de então. Um exemplo dessa seletividade
foi o processo de privatização, que, apesar de um sem-número de denúncias e
indícios de corrupção no processo e na modelagem, foi
sistematicamente negligenciado pela grande imprensa brasileira, em razão de seu
apoio incondicional a ela. De toda forma, o fato é que a análise
moralista aparece como fator explicativo dos processos de corrupção, mas seus
intérpretes a invocam seletivamente;
• a disjunção entre
elites políticas e sociedade, como se as primeiras não fossem reflexo,
direto e/ou indireto, da última. Trata-se de visão simplista, mas bastante
difundida, quanto à desconexão entre eleitos e eleitores, em razão ou da
“corrupção inescapável” dos que chegam ao poder, ou de uma inexplicável
autonomia dessas elites perante o corpo de eleitores;
• a ausência de uma
base educacional formal sólida como explicação para comportamentos não
republicanos. Nessa perspectiva, desconsideram-se o chamado “crime do colarinho
branco” e as diversas formas de “tráfico de influência”, típicos das elites,
como os atos mais graves e praticados por pessoas “educadas”, em termos de
educação formal. Assim, o mote do senso comum – “a educação é a base de tudo” –
concede à educação formal um poder equalizador, republicano e democrático que
decididamente ela não tem e não pode ter, dado que a escola é também reflexo da
sociedade, com todas as suas virtudes e mazelas, mesmo que seja um ambiente
mais propício, em tese, à reflexão. Com isso, de forma alguma se
está advogando a desimportância da escola, e sim seu papel real na sociedade,
particularmente no Brasil. Nesse sentido, os meios de comunicação de massa são
claramente concorrentes, com enorme superioridade quanto aos impactos, à
escola, pois sua capacidade de incutir comportamentos e valores, inclusive
estéticos, é brutal, ainda mais em países como o Brasil, em que não há qualquer
responsabilização desses meios, embora sejam concessões públicas;
• por fim, a ausência
e/ou fragilidade de leis e de instituições capazes de fiscalizar,
controlar e punir os casos de malversação dos recursos públicos, como se o país
fosse “terra de ninguém”, desconsiderando-se os inegáveis avanços
institucionais desde 1988. É importante notar o novo papel do Ministério
Público, com poderes inéditos na história brasileira, desde 1988; a recente criação
das Defensorias Públicas estaduais, que contribuem para a melhoria do acesso à
Justiça pelos mais pobres; as funções fiscalizatórias da Corregedoria Geral da
União; as revisões no papel dos tribunais de contas, entre tantas outras
instituições e marcos legais organizados em torno dos conceitos de controles
internos, externos e sociais (caso, deste último, das organizações da sociedade
politicamente organizada na fiscalização do Estado).
Todas essas versões tendem a
negligenciar que a corrupção, em graus variados, existe em todos os países e é,
de certa forma, também um fenômeno sociológico. Reitere-se que tais versões,
com suas variações, são disseminadas na sociedade brasileira, tanto entre as
elites quanto entre o senso comum – aliás, as chamadas elites tendem a comungar
dos valores do senso comum quando o assunto é corrupção.
Pois bem, em contraste às
considerações culturalistas – de modo geral preconceituosas e simplificantes –,
às moralistas, às generalizantes e às pouco refletidas, urge analisarmos a
corrupção como um fenômeno intrinsecamente político, que se refere, portanto, à
maneira como o sistema político brasileiro está organizado.
A lógica do sistema político
brasileiro é marcada pela privatização da vida pública, não em termos
moralistas aludidos, e sim quanto às estruturas que o sustentam. Vejamos: o
financiamento das campanhas políticas é essencialmente privado, embora haja
também uma pequena parcela de financiamento público via fundo partidário, o que
abre espaço à disseminada prática do caixa dois, com todas as suas variações; o
sistema partidário é fluido e altamente flexível, o que é uma realidade desde a
redemocratização, constituindo a vida partidária, para grande parte dos atuais
28 partidos existentes atualmente, num grande balcão de negócios.
Expressões do jargão político
brasileiro, como “partido de aluguel”, “venda do tempo na TV e no rádio” com
vistas às campanhas eleitorais, e alianças partidárias que objetivam a
distribuição de nacos do Estado, têm por trás uma cadeia de interesses privados
empresariais, de tamanhos e graus diversos, o que tende a fazer dos partidos
representantes de interesses privados setoriais.
O próprio imperativo de
governar por meio de amplas coalizões, em razão da fragmentação dos sistemas
partidário e eleitoral, tem como resultado tanto a construção de alianças sem
qualquer confluência programática, como a necessidade de o Estado, nos três
níveis da federação, alocar tais grupos. Isto impacta a coerência e a
coordenação das políticas públicas e a busca de uma política que se aproxime da
caracterização de “pública”, dada a rede de relações e interesses privados,
notadamente empresariais, que estão por trás dos partidos políticos; entre
outras modalidades.
Essas características produzem
cálculos políticos nos partidos que os induzem a “jogar o jogo” das regras
estabelecidas, não tendo, dessa forma, interesse em alterá-las: trata-se de um
círculo vicioso.
A Reforma política
desprivatizadora
Nesse sentido, é claro que a
reforma política é uma necessidade imperiosa, a começar pelo financiamento
público das campanhas, o que poderia contribuir para desprivatizar a relação
dos partidos com o Estado. Mas isso somente se essa reforma for acompanhada por
uma inovadora e leonina institucionalidade voltada para
fiscalizar e punir o uso de recursos privados.
Não que, por mágica, os
interesses privados desapareceriam da vida pública, até porque, no capitalismo,
eles lhe são inerentes6, mas é possível diminuí-los ao se estabelecerem
novos marcos, em que o privatismo seja, ao menos, controlado.
Assim, o norte da reforma
política deve estar assentado no binômio “desprivatização” da vida pública e
“aumento da representatividade e da responsabilidade” dos partidos, o que tem
como consequência a diminuição de seu número.
Paralelamente à reforma
política, há uma pauta permanente do Estado brasileiro, referente à
transparência, à publicização, à participação popular e ao republicanismo.
Por mais avanços que a
sociedade e o Estado estejam vivendo desde a redemocratização e, sobretudo,
desde a Constituição de 1988, ainda há uma incrível opacidade que encobre
esquemas poderosos de tráfico de influência.
As informações, que deveriam
ser públicas, como contratos estabelecidos entre o Estado e os agentes
privados, são de difícil acesso; a linguagem da administração
pública continua hermética aos cidadãos comuns, a começar pelo orçamento; os
mecanismos do chamado “governo eletrônico” não são voltados ao controle do
Estado – o que implica controle sobre o poder dos agentes privados, associados
à burocracia e a segmentos dos políticos eleitos –, e sim à prestação de
serviços; o processo licitatório é flagrantemente burlado pela própria natureza
oligopólica da economia brasileira, principalmente nas obras “públicas” que
envolvem bilhões de reais; não há no país uma “cultura política” de
prestação de contas, por mais que avanços sejam observados desde a
redemocratização e mesmo pela intensa mobilização da sociedade politicamente
organizada no Brasil.
Os mitos disseminados acerca da
corrupção encobrem seu entendimento como fenômeno intrinsecamente político, com
consequências sociais, políticas, econômicas e culturais. Mais ainda, as
imagens e versões morais e moralistas escamoteiam os efeitos da desigualdade
social histórica e profunda do Brasil, assim como a utilização do Estado pelas
e para as elites.
A ainda vigente opacidade do
Estado – cujos exemplos estão no orçamento, nos contratos que deveriam ser
publicizados, nas informações teoricamente públicas, em sistemas decisórios
pouco claros, e na ainda pouco institucionalizada participação popular –
decorre, portanto, do caráter essencialmente político e histórico desse
fenômeno.
O fato de mesmo o cidadão
comum, pobre, não antever claramente a linha divisória entre o público e o
privado é muito mais a expressão da forma como o Estado foi estruturado, e de
sua apropriação por elites distintas ao longo do tempo, do que propriamente um
fenômeno moral. Trata-se de um fenômeno político, de poder, por excelência!
Interessante alacir....nao havia pensado por esse vies. Bjs. Mayara
ResponderExcluir