PÓS-MODERNIDADE E HIPERMODERNIDADE: A ETERNA BUSCA PELO HUMANO...
Por Alacir Arruda
Tenho sido muito cobrado por
alguns alunos e amigos a respeito do que pensa um sociólogo a respeito da
pós-modernidade. Sempre digo a eles que
isso se resume a rótulos e que a única
coisa perene quanto a existência humana e o progresso. Se é positivo ou
negativo, isso depende de como o encaramos.
Em face disso resolvi escrever esse artigo onde busco relacionar os fenômenos
que caracterizam esse momento.
O lenhador, assim como o caçador,
é um matador de seres vivos, um destruidor da própria base de subsistência
(...) A metáfora ideal para o pós da hipermodernidade é a do lavrador e não a
da racionalidade do jardineiro
As metáforas do caçador e a do
jardineiro têm sido utilizadas por muitos pensadores para caracterizar as
grandes transformações no comportamento da humanidade. A primeira, sempre
aparece associada à pré-modernidade e, a segunda, vinculada à modernidade. Daí
em diante, as características do moderno se embaralham e, mesmo discordando das
terminologias em suas conceituações os estudiosos do assunto tendem a recorrer
novamente à metáfora do caçador para representar os tempos atuais.
O caçador simboliza aquele
indivíduo competitivo, predador nômade, incapaz de dar qualquer importância à
reposição do que abate. Para ele, caso a caça se esgote, cabe-lhe apenas mudar
para outro lugar. Não esboça qualquer preocupação se os demais têm o que comer.
Por outro lado, a figura do jardineiro decalca aquela pessoa que, por meio da
racionalidade, é vista como atenta à separação das ervas daninhas na estrutura
social, de modo a privilegiar o bem-estar da sociedade.
Olhando assim, apenas para essas
duas metáfora, não há dúvida de que entre elas a que mais se adequa ao que
estamos vivendo é a do caçador. Mas antes de definirmos a metáfora, caberia
melhorarmos a compreensão do que realmente estamos vivendo. Na falta de uma
melhor conceituação, muitos dizem que chegamos à pós-modernidade. Mas como, se
ainda prevalece a ordem do cientificismo, do individualismo, do imediatismo e
da mercantilização da vida, que marcou a modernidade?
Não houve ainda uma ruptura que
alterasse a base dos fundamentos da modernidade. O máximo que se poderia dizer
é que houve uma exacerbação do uso livre da razão a ponto de colocar a
modernidade em situação de risco, em estágio elevado de esgotamento. A rigor,
estar à beira do abismo não significa ainda descontinuidade. Na tentativa de
encontrar um contorno para o que está acontecendo no mundo, alguns pensadores
que recusam a expressão pós-modernidade vêm criando novos conceitos para a
crise de sociabilidade.
O sociólogo polonês, Zygmunt
Bauman, criou a "modernidade líquida", como tradução do fim da perspectiva
de longo prazo, do descolamento do poder dos espaços tradicionais da política
para zonas sociais difusas, do fortalecimento do sistema de insegurança social,
da competição aética e do individualismo inconsequente. Bauman é um dos que
usam a metáfora do caçador para ilustrar o comportamento agressivo de uma
sociedade impulsionada pela economia do consumismo.
As reflexões de Bauman têm sido
de grande valor para o desvendar do imbróglio em que se meteram os ideais
etnocentristas formuladores da modernidade. Ajudam a criar paralelos e a
mostrar que apesar de magnífico em suas intenções, o Iluminismo foi traído pela
incapacidade de ouvir o outro e de considerar os saberes deixados fora do
escopo da sua brilhante racionalidade. Acho que "modernidade líquida"
diz pouco da cultura do excesso, da insaciabilidade e do imediatismo.
Nem pós-modernidade, nem
modernidade líquida. Prefiro a "hipermodernidade" do filósofo francês
Gilles Lipovetsky, na busca de entender situações como o presentismo, o
fundamentalismo tecnológico, a degradação dos limites urbanos e as bolhas
virtuais. Acho que esse termo se aproxima mais do que seria a figura expandida
da cleptocracia, utilizada pelo biólogo estadunidense Jared Diamond para
explicar as transferências da riqueza líquida da sociedade para as classes
dominantes, políticas, religiosas, intelectuais, sindicais, de ajuda
humanitária e econômicas.
A hipermodernidade poderia muito
bem corresponder à Baixa Modernidade, da mesma maneira que se convencionou
caracterizar de Baixa Idade Média o tempo em torno da crise do modelo de
produção e proteção feudal, até a chegada da Renascença, como uma afirmação de
mudança para a modernidade. Qual, então, o recurso metafórico que poderia
representar a hipermodernidade? Para mim, a figura do lenhador é bem mais
ajustada do que a do caçador.
O lenhador, assim como o caçador,
é um matador de seres vivos, um destruidor da própria base de subsistência. Em
termos figurativos, não estaria ligando para a desertificação, pois, em caso de
esgotamento das reservas do seu entorno poderia se deslocar para outras áreas
verdes. O fato de viver cortando árvores, com machados ou motosserras, o
projeta no mundo dos significados como um consumidor indiscriminado dos
recursos naturais.
No momento em que as mudanças
climáticas se acentuam com as catástrofes resultantes do aquecimento global, da
devastação do meio ambiente e da explosão demográfica, vejo na imagem do
lenhador uma metáfora bem mais ajustada ao comportamento comum da humanidade do
que a analogia do caçador. O lenhador é uma figura que vem da oralidade
medieval e, nas fábulas como em João e Maria, está associado ao desespero
provocado pelos limites da sobrevivência, tanto que se submete ao dolo de
largar os filhos na floresta para que sejam entregues à própria sorte.
A exploração florestal
indiscriminada, as madeireiras sem escrúpulos, as motoniveladoras de lâminas
rascantes, as carretas e as embarcações transportadoras de árvores
assassinadas, os troncos valiosos que descem pelos rios do contrabando, tudo
isso se encaixa na metáfora do lenhador. A ideia de que a natureza estaria à
disposição do bel-prazer da natureza humana, como se fosse algo desintegrado e
inesgotável, está nas raízes da modernidade e na sua fase de corte, que é a
hipermodernidade.
Ainda levaremos várias décadas
para que a desmodernidade aconteça e, ai sim, cheguemos à pós-modernidade.
Temos no mínimo meio século de mal-estar até que se assente a poeira da
multipolaridade, da mobilidade demográfica e se estabilize a elevação do nível
dos oceanos, iniciando-se a modelagem de uma nova regionalidade e de uma nova
geografia humana, que surgirá das trocas de climas, da mudança das estações e
da interrupção dos nossos hábitos insustentáveis.
Quanto mais rápido resolvermos
optar por estilos de vida que preservem o meio ambiente, mais próximos
estaremos de um longo período de paz e da garantia de que teremos a
continuidade da experiência humana. Caso escolhamos esse caminho, poderemos ter
até o final do século uma vida plugada, antenada, em rede de afinidades
espalhada pelo mundo, mas radicada na comunidade orgânica, perto da terra,
parte da terra.
A metáfora ideal para a
pós-modernidade, ou melhor, para o pós da hipermodernidade, é a do lavrador e
não a volta do jardineiro. Penso assim, porque enquanto o jardineiro tem a
impressão de que é o dono da beleza do jardim, o lavrador está mais afeito a
respeitar à terra, a cultivar a simplicidade, a organicidade, a fazer a
semeadura do que é preciso produzir para viver, a colher os frutos de uma
relação integrada com a natureza e do uso da ciência e da tecnologia em favor
do usufruto pleno do que a vida nos oferece.
Sinto-me confortável em reforçar
duas metáforas, a do caçador e a do jardineiro, que já vêm sendo trabalhadas
por pessoas que se preocupam em dar sentido à dinâmica social, e por estar
propondo outras duas, a do lenhador e a do lavrador, que possam complementar o
ciclo que vai da pré à pós modernidade, passando pela modernidade em si e pela
hipermodernidade.
Entendo que a percepção desse
conjunto de metáforas nos facilita enxergar onde estamos na trajetória da
modernidade e contribui para que nos apressemos para sair do estágio degradante
de lenhador. A pós-modernidade está batendo à nossa porta, para nos avisar que
há um mundo a ser plantado lá fora da redoma onde estamos presos pelo
auto-engano, pelo medo, pelo estresse, pelos falsos desejos e pela correria sem
ter pra quê.
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