Perigo iminente: o ocidente quer ressuscitar a Guerra Fria..
por: alacir arruda e roberto savio
Paraquedistas
norte-americanos chegam à Polônia em 23/4, para participar de exercícios
militares conjuntos. Desde 1990, EUA desrespeitam compromisso de não ampliar
OTAN e instalam bases militares em torno da Rússia
"Além de
não representar ameaça militar ou econômica, a Rússia suportou provocações em
série. Mas militares petroleiras e mídia querem fabricar um demônio."
Há algumas semanas que grande parte da chamada "mídia mainstream" está
engajada em denunciar, primeiro a suposta ação de Putin na Crimeia – e em
seguida, na Ucrânia. A última capa de The Economist mostra um
urso engolindo a Ucrânia, sob o título “Insaciável”. A unanimidade na mídia é
sempre constrangedora, porque significa algum ato de dobrar joelhos. Será
possível que os quarenta anos de Guerra Fria estejam sendo ressuscitados?
A inércia desta guerra, na verdade, nunca foi
rompida. Diga “o presidente comunista de Cuba, Raúl Castro”, e ninguém ficará
chocado. Use a mesma lógica, e chame o presidente Obama de “capitalista” e
repare nas reações. Na Itália, Sílvio Berlusconi foi capaz, durante vinte anos,
de ganhar as eleições contra a “ameaça” do comunismo – representada, segundo
ele, pelo partido à esquerda, agora no poder, sob Matteo Renzi, um católico
devoto.
No caso da Ucrânia, há pelo menos quatro pontos
fulcrais de análise que estão sendo ocultados pelo coro de mídia. O primeiro é
que nunca se mencionam as responsabilidades do Ocidente no caso. Deveríamos
lembrar que Mikhail Gorbachev, presidente russo ao final dos anos 1990,
negociou com os chefes de Estado dos EUA (Ronald Reagan), Grã-Bretanha (Margareth
Thatcher), Alemanha (Helmut Kohl) e França (François Mitterrand) que aceitaria
a reunificação da Alemanha; mas que que o Ocidente, em contrapartida, não
deveria tentar invadir a área de influência da Rússia. Sobre isso, há grande
quantidade de documentos.
Mas assim que Gorbachev foi eliminado, o jogo foi
reaberto. A total docilidade de Boris Yeltsin, seu sucessor, diante dos Estados
Unidos, é bastante conhecida. Muito menos debatido é o fato de o Fundo
Monetário Internacional ter oferecido um empréstimo de 3,5 bilhões de dólares,
para sustantar o rublo. O empréstimo, porém, foi dirigido aoBank of America, que
o distribuiu entre várias contas russas. Nenhum centavo chegou ao Banco Central
russo. O dinheiro desembarcou nas contas de oligarcas, que puderam comprar
praticamente todas as empresas públicas russas. Em seu livroFarewell Russia, Gioulietto
Chiesa explica o processo em detalhes. E o FMI jamais sequer balbuciou um
protesto. Quando um desconhecido Vladimir Putin foi levado ao poder por
Yeltsin, ele foi obrigado a aceitar um acordo de proteção aos oligarcas.
Depois de Yeltsin, Putin apoiou a invasão iminente
do Afeganistão por Washington, de uma forma que teria sido inimaginável durante
a Guerra Fria. Aceitou que aviões norte-americanos sobrevoassem o espaço aéreo
da Rússia, que os EUA usassem as bases militares nas repúblicas da ex-União
Soviética na Ásia Central, e ordenou aos militares que compatilhassem sua
experiênia no Afeganistão. Então, em novembro de 2001, Putin visitou George
Bush em seu rancho no Texas, em meio a declarações amistosas (“Putin é um novo
líder que ajuda a paz mundial… trabalhando em proximidade com os Estados
Unidos”). Poucas semanas depois, Bush anunciou que os EUA estavam abandonando o
Tratado de Mísseis Anti-balísticos, para poder construir um sistema de guerra
no espaço destinado, em palavras a proteger a OTAN do… Irã. Era uma ação
claramente voltada, na prática, contra a Rússia, para espanto de Putin.
Na sequência, em 2002, Bush convidou sete nações da
ex-União Soviética – entre elas, Estônia, Lituânia e Letônia – a somar-se à
OTAN, o que se concretizou em 2004. Em 2003, a invasão do Iraque, sem
consentimento da França, Alemanha e Rússia, transformou Putin num cítico aberto
dos Estados Unidos e de sua proposta de promover a democracia passando por cima
do direito internacional. No mesmo ano, na Geórgia, a Revolução Rosa levou
Saakashvili, um pró-ocidental, ao poder. Quatro meses depois, na Ucrânia, a
Revolução Laranja empoderou outro presidente pró-ocidental, Yushcenko. Em 2006,
a Casa Banca pediu permissão para reabastecer o avião de Bush em Moscou, mas
deixou claro que Bush não teria tempo para saudar Putin. E em 2008, houve a
declaração unilateral de independência de Kososo da Sérvia, com o apoio dos
Estados Unidos e contra as posições da Rússia. Então, Bush pediu à
OTAN para incorporar a Ucrânia e a Geórgia – um tapa na cara de Moscou. Em
face disso, não deveria ter causado surpresa o gesto de Putin, que interveio
militarmente na Geórgia em 2008, quando este país tentou incorporar as regiões
da Ossétia do sul e Abkhazia, de maioria russa. Ainda assim, é fácil lembrar
que a mídia tratou o movimento como ação sem motivos.
Obama tentou reparar os danos provocados por Bush
nas relações internacionais dos EUA. Ele propôs uma retomada (“reset”) nas
relações com a Rússia, que foi, de início, bem sucedida. Moscou aceitou
oferecer seu espaço aéreo para transporte de suprimentos militares norte-americanos
destinados ao Afeganistão. Em 2010, a Rússia e os Estados Unidos assinaram um
novo tratado Start, reduzindo seu arsenal nuclear. E a Rússia apoiou as sanções
aprovadas pela ONU contra o Irã, desistindo de vender seis mísseis terra-ar
S/300 ao Teerã.
Mas logo a seguir, em 2011, tornou-se claro que os
Estados Unidos tentaram intervir nas eleições parlamentares russas. Toda a
mídia ocidental colocou-se contra Putin, que acusou os EUA de financiarem, com
centenas de milhões de dólares, grupos oposicionistas. O embaixador
norte-americano, McFaul, afirmou tratar-se de um grande exagero, e acrescentou
que apenas algumas dezenas de milhões de dólares haviam sido doados a grupos da
sociedade civil. Putin foi eleito novamente para a presidência em 2012 [após
quatro anos como primeiro-ministro], já então obcecado com as ameaças
ocidentais a seu poder. Em 2013, ele deu asilo ao ex-agente norte-americano
Edward Snowden. Em represália, Obama cancelou um encontro bilateral – a
primeira vez em que uma reunião de cúpula entre Washington e Moscou foi
desmarcada, em cinquanta anos.
Em meio a tudo isso, houve a Primavera Árabe. A
Rússia autorizou ação militar na Líbia, mas apenas para garantir ajuda
humanitária. Ela foi utilizada para provocar mudança de regime, e Moscou sentiu-se
enganada. Protestou, inutilmente. Então, surgiu a crise na Síria e o Ocidente
tentou obter novamente o apoio da Rússia para uma mudança de regime –
irritando-se com a recusa de Putin. Finalmente, agora, houve a bem conhecida
intervenção na Ucrânia, para colocar o país na União Europeia e distante do
bloco econômico eurasiano que a Rússia tenta criar.
O segundo ponto é que nenhuma ação política, exceto
uma guerra, pode reduzir a Rússia à condição de um poder apenas local. É o
maior país do mundo, em território. Estende-se das fronteiras da União Europeia
até o Extremo Oriente. É, ao mesmo tempo, Europa e Ásia. Mantém rivalidade com
a China na Ásia, tem conflitos territoriais com o Japão e está diante dos EUA
no Estreito de Behring. É um produtor destacado de petróleo, membro permanente
do Conselho de Segurança da ONU e tem um arsenal nuclear. Qualquer esforço para
cercá-la ou enfraquecê-la, agora que o confronto ideológico ficou para trás, só
pode ser visto como parte da velha política imperial.
A Rússia não é uma ameaça, ao contrário da União
Soviética. Seu PIB é 15% da Europa – que tem 500 milhões de habitantes e 16%
das exportações mundiais. A China tem 1,3 bilhão de habitantes, e 9% do
comércio mundial. A Rússia, apenas 145 milhões e 2,5% das exportações mundiais.
Tem poucas indústrias, também porque Putin não está interessado na modernização
do país, que inevitávelmente produziria um crescimento da classe de
profissionais instruídos, que já se opõe a ele.
O terceiro ponto é que, portanto, a crise ucraniana
deveria ser examinada melhor. É um Estado muito frágil, em que a corrupção
controla a política e que vive problemas econômicos estruturais. Seu Oeste é
mais rural; o Leste, mais industrializado. Os trabalhadores desta região sabem
que um ingresso na Europa representaria o fim de muitas fábricas. No Oeste,
muitos colocaram-se ao lado dos nazistas na II Guerra Mundial e há um movimento
nacionalista forte, próximo ao fascismo. A Ucrânia é um problema muito caro e
complicado.
É evidente que intervir apenas para desafiar Putin,
e oferecer dinheiro (basicamente, o que fez a União Europeia) parece um
pensamento muito tacanho. Estaria a UE preparada para mudar os critérios de
pertencimento ao bloco, para aceitar um país que claramente não se adequa a
eles; e a assumir um enorme peso, para aparecer como vencedora, na disputa
contra um “homem forte”?
Isso finalmente nos leva ao quarto ponto. Putin é
um ex dirigente da KGB, para quem a Rússia foi tratada injustamente, na
dissolução da União Soviética. Todos os esforços para chegar a um entendimento
com o Ocidente foram traídos, com sucessivas ampliações da OTAN, uma rede de
bases militares cercando o país, um claro apoio do Ocidente a todas as
oposições, um tratamento comercial medíocre. Ele sabe que estas opiniões sobre
o declínio russo são compartilhadas por uma ampla maioria de cidadãos. Mas ele
também é um autocrata arrogante, para dizer o menos, que nada tem feito para
promover modernização econômica – porque, ao manter a produção e o comércio em
suas mãos, conserva seu controle.
Para ele, a Ucrânia foi politicamente inaceitável.
Ele está apresentando-se como defensor dos cidadãos russos, algo que lhe
permite atuar em todos os lugares onde há minorias russas. A questão é: se
Putin se for, haverá uma Rússia democrática, participatória, limpa,
incorrompida? Aqueles que conhecem bem o país não acreditam nesta hipótese. Há
inúmeros exemplos de que a remoção de autocratas não conduz à democracia por si
mesma.
Portanto, haveria lógica em continua a cercar
Putin, em nome da democracia? Isso não fortaleceria o próprio jogo do
presidente, que associa sua imagem à de defensor dos russos? Eles também sofrem
com a inércia da Guerra Fria e não veem o Ocidente exatamente como um aliado.
Putin é hoje a única força de coesão na Rússia. Se ele se fosse, haveria,
muito provavelmente, um longo período de caos. Isso certamente não interessa
aos cidadãos russos… e é sempre perigoso praticar jogos de poder sem levar em
conta a estabilidade da Europa… Claro, este não é o cálculo dos estrategistas
ocidentais, que adorariam eliminar qualquer outro poder…
Como escreve Naomi Klein, o único vencedor, nesta
disputa, são as empresas de energia. Elas estão fazendo campanha para que o
mundo torne-se independente do petróleo russo. Portanto, vamos acelerar a
produção petroleira nos EUA, a despeito dos notórios prejuízos ao ambiente. E
vamos torcer para que a Europa deixe de usar gás russo – “nós exportaremos para
eles”. Na verdade, não há estruturas para fazê-lo e seriam necessários muitos
anos para criá-las… Mas exatamente no momento em que o mundo debate como
controlar a mudança climática, e reduzir o uso de combustíveis fósseis, uma
contra-estratégia importante é colocar o tema em segundo plano… Tarzi Vittach,
um autor do Sri Lanka, disse, certa vez: “no fundo de tudo, há outra coisa”.
Não há muitos exemplos de petróleo e democracia caminhando lado a lado…