AINDA PREFIRO AS
MARTELADAS DE NIETZSCHE
Por Alacir Arruda
"Eu acreditaria
somente num Deus que soubesse dançar" (Nietzsche).
Em pleno século XXI, mais de 100 anos
após sua morte, Nietzsche é o filósofo que mais vende livros no mundo, tudo que
é lançado sobre ele esgota nas prateleiras das livrarias em semanas. Em recente
pesquisa de um importante Jornal inglês, Nietzsche apareceu como a quarta
figura mais conhecida do mundo, estando a frente de Jesus, que apareceu na pesquisa em décimo primeiro.
Mas o que tem esse homem que encanta
tantos leitores sejam fãs sejam curiosos?
Talvez seja a sua autenticidade, sua audácia sua loucura ou um misto de tudo
isso. Nietzsche pode ser considerado um filósofo da Moral, uma analista da
moral ocidental que para ele, possui como principal característica a sua própria
imoralidade.
Nietzsche afirma ainda em seus escritos, que não só
a moral e a religião estão desconectadas da realidade, no cristianismo, mas
também o conceito de Deus. Nietzsche processa uma genealogia do conceito de
Deus percebendo uma transformação do Deus de Israel, o Deus de um povo, para o
Deus dos cristãos, o Deus cosmopolita. Diz que um povo que ainda acredita em
si, na sua potência e virtudes, tem um Deus próprio como projeção dessa mesma
força e renda-lhe graças por isso. Render graças é típico de quem é rico,
orgulhoso de si e precisa de um Deus a quem sacrificar. A religião é, nestas
condições, uma forma de agradecimento. Um agradecimento a si mesma, eis por que
se precisa de um Deus. Semelhante Deus pode ser útil e prejudicar, deve poder
ser amigo e inimigo, e é admirado no bem como no mal. Um Deus que não conhece a
cólera, a vingança, a inveja, a astúcia, a violência não é um Deus que valha a
pena.
Porém, quando um povo entra em colapso, em
decadência e sente esvair-se a fé no futuro, a sua esperança na liberdade,
quando a submissão lhe parece ser necessária, então muda-se também de Deus,
tornando-se agora medroso, humilde, aconselhando a “paz de alma”, a ausência de
ódio, a indulgência e até o amor para com os amigos e inimigos. Nessa mudança
Deus advém como somente bom. Não há alternativa para os deuses, diz Nietzsche,
“ou são a vontade de poder – e enquanto o forem serão deuses de um povo – ou
são a impotência do poder – e então tornam-se forçosamente bons...” (NIETZSCHE,
1997, § 16, p. 30). Um Deus dos fracos, dos humildes é, pois, um Deus
forçosamente decadente. Ou, o que dá no mesmo, um Deus decadente, sem impulsos
viris, converte-se automaticamente no Deus dos fisiologicamente regredidos,
fracos. Essa transformação acarretará um dualismo moral: por um lado um Deus
“bom em si” dos fracos e, por outro, a demonização do Deus dos fortes e
vencedores. Eis o instinto de vingança de volta na construção da imagem de
Deus. Assim, tanto o Deus bom quanto o Diabo são frutos da decadência. E os
teólogos querem nos fazer crer, diz Nietzsche, que isso é uma evolução no
conceito de Deus, do Deus de Israel para o Deus cristão. O contrário é
verdadeiro, a saber, há uma involução. Do forte e valoroso, para o fraco e
medroso. O Deus decadente é a imagem e semelhante dos seus adoradores em
processo de afogamento. O povo errante, sem pátria, enfraquecido acaba então
fazendo de Deus sem pátria, um cosmopolita, um Deus metafísico, fazendo-se
“ideal”, “espírito puro”, “absolutum”,
“coisa em si”. A ruína de um Deus: tornar-se “coisa-em-si”. É assim que o Deus
declina, transformando-se em Deus dos decadentes e ele mesmo decadente, um Deus
que se opõe a tudo o que é vontade de viver. “Deus degenerado em contradição
com a vida, em vez de ser a sua glorificação e o seu eterno sim!... Deus, a
fórmula para toda a difamação do ‘aquém’, para toda a mentira do ‘além’! O nada
divinizado em Deus, a vontade do nada santificada!...” (NIETZSCHE, 1997, § 19,
p. 32). Dois mil anos de história e nenhum Deus novo no horizonte, diz
Nietzsche.
O cristianismo só pode ser compreendido
no terreno em que foi fertilizado. Ele é o fruto lógico do instinto judaico: ‘A
salvação vem dos judeus’. O cristianismo parece ser a antítese do judaísmo, mas
na verdade é a sua extensão e conseqüência última. Conseqüência da forma de
valorar do sacerdote judeu. O sacerdote judeu, no seu instinto de poder, no
momento em que o judaísmo se desintegra enquanto povo forte, passa para uma
nova imagem de Deus. E que imagem? Uma imagem de Deus desnaturalizado através
da interpretação de que toda felicidade é prêmio, e toda a infelicidade é
castigo por um pecado cometido contra Deus. Com isso a moral já não é mais uma
expressão da vida e do crescimento de um povo, mas se torna a antítese da vida.
Agora a fortuna é interpretada como prêmio, a desventura como castigo divino.
Nessas novas condições, pergunta-se Nietzsche, o que é a moral judaica, o que é
a moral cristã? “O acaso despojado de sua inocência; a infelicidade manchada
com o conceito de pecado; o bem-estar como perigo, como tentação; o mal estar
fisiológico envenenado com o verme da consciência...” (NIETZSCHE, 1997, § 25,
p. 40).
Com a transformação do Deus da justiça,
imagem do Deus do povo forte, para o da “ordem moral do mundo”, imagem de Deus
do povo enfraquecido, tudo é interpretado pelos conceitos de prêmio e castigo
por um pecado contra a “ordem moral do mundo”. Que significa a “ordem moral do
mundo”? Significa, diz Nietzsche, um grande artifício ardiloso do sacerdote na
sua transformação do conceito de Deus, interpretado segundo a sua vontade de
poder. A “ordem moral do mundo”, essa mentira inventada pelo sacerdote para
conduzir a humanidade pelo cabresto e reeditada pelos filósofos modernos,
afirma que existe uma “vontade de Deus acerca do que o homem deve e não deve
fazer; que o valor de um povo, de um indivíduo, se avalia em conformidade com a
sua maior ou menor obediência à vontade de Deus; que nos destinos de um povo,
de um indivíduo, se revela como dominante a vontade de Deus, isto é, como
castigando e recompensando, segundo o grau de obediência” (NIETZSCHE, 1997, §
26, p. 42). Ele é mesmo inventivo, o sacerdote. Ele abusa do nome de Deus,
chamando “reino de Deus” a um estado de coisas por ele mesmo inventado, e chama
de “vontade de Deus” aos meios em virtude dos quais semelhante estado se
alcança ou se mantém. E com um cinismo incomum avaliam todos conforme forem
úteis ou se opuserem a sua forma de avaliação. Inventa ainda uma obediência a
Deus, que no fundo é uma obediência ao próprio sacerdote. “A desobediência a
Deus, isto é, ao sacerdote, à ‘lei’, recebe agora o nome de ‘pecado’; os meios
para de novo se ‘reconciliar com Deus’ são, como é justo, meios com que se
garante ainda mais profundamente a sujeição ao sacerdote: só o sacerdote ‘salva’...”(NIETZSCHE,
1997, § 26, p. 44). O cristianismo surge de dentro desse espírito de avaliação
e o eleva ao grau máximo. Mas, e Jesus, é ele o responsável por essa avaliação
invertida?
O
cristianismo não pode ser confundido com a figura histórica de Jesus. Na
origem, antes da apropriação pelo espírito judaico, o Cristianismo, aquele de
Jesus Cristo, era bem outra coisa. Porém, o Cristianismo morreu na cruz. O
Cristianismo de Jesus, em primeiro lugar, diz Nietzsche, não conhece o conceito
de culpa e castigo e igualmente o conceito de recompensa. Nem mesmo o conceito
de ‘pecado’ e ‘remissão dos pecados’, nem mesmo de ‘fé’ e ‘salvação pela fé’,
pois a distância entre Deus e o homem é suprimida em Jesus. Essa é, diz
Nietzsche, a verdadeira ‘Boa Nova’. A ‘beatitude’ não é prometida, é realizada.
A conseqüência disso é que o Jesus, diz Nietzsche, introduz um único critério
para ser cristão: a prática. “Não é a fé que distingue o cristão: o cristão
age, distingue-se por agir diferente”
(NIETZSCHE, 1997, § 32, p. 52). Qual prática? Ao que é mau não oferece
resistência nem por palavras nem no coração; não faz distinção de pessoas; não
se aborrece com ninguém e a ninguém menospreza; não resiste, não defende o seu
direito, não dá passo algum que afaste dele o fim; suplica, sofre e ama os que
lhe fazem o mal; não se encoleriza, não responsabiliza, enfim, simplesmente
ama. Jesus faz da prática, e não da fé, a “Boa Nova”. A vida do Salvador nada
mais foi do que essa prática. A sua morte foi conseqüência da mesma prática.
Ele não morreu por nossos pecados, morreu pelo próprio pecado de ousar desafiar
a doutrina da casta sacerdotal, que a tudo remete para o “além” para se manter
no poder no aquém. O ‘Reino de Deus’, diz Jesus, está no meio de vós. Ele é um
estado do coração e não algo que vem ‘para além da terra’ ou ‘após a morte’.
“Isto levou-o à cruz, prova-o a inscrição da cruz. Morreu pelo seu pecado – não
há razão para se pretender, apesar de o ter sido feito tantas vezes, que morreu
pelos pecados dos outros” (NIETZSCHE, 1997, § 27, p. 46). Morreu pelo seu
pecado, esse ‘alegre mensageiro’. Sua morte é uma morte política. Não morreu
para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver. A prática, diz
Nietzsche, foi o que ele deixou à Humanidade.
Professor, a cada dia o sr. me surpreende mais.Lindo artigo de Nietzsche.Bjs de sua aluna (.Nataly)
ResponderExcluirAte que para um agnóstico como você é, além de um fã declarado de Nietzsche, você pegou leve.. Valeu pelo artigo. (Mathias)
ResponderExcluirValeu mathias...
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