sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Um copo de cólera..

NADA ALÉM QUE "UM COPO DE CÓLERA."

Por Alacir Arruda

Quando eu tinha 18 anos, e ainda prestava o serviço militar obrigatório, eu ganhei um presente de uma pessoa, à época, muito importante para mim, tratava-se de um livro chamado "Um Copo de Cólera" do escritor brasileiro Raduan Nassar. Confesso que na época não me interessei, pois vivia as loucuras de uma juventude transviada e cabarés eram bem mais interessantes.. Me recordo que essa pessoa me disse que ao ler o livro eu não o entenderia , logo , deveria lê-lo novamente aos 28 anos e depois aos 38 , só assim eu poderia ter uma vaga ideia do que essa obra trata.

É evidente que eu não cumpri o que ela pediu, li somente aos 18 e, obviamente, nada entendi. Como guardo todos os meus livros, encontrei nos meus guardados outro dia essa obra. Fiquei emocionado ao ler a dedicatória que ela me escreveu com carinho: 

" Querido Alacir: Busquei o livro mais velho do sebo. 
O livro mais vivido, mais chorado,
mais sofrido. Este livro carrega não só
a história do papel, ele carrega várias outras 
que o rodearam por sabe-se lá quanto tempo. 
Escolhi este livro por um motivo simples. 
É hora de ele descansar. Todos merecemos 
esse momento. Quero dar a este livro 
o presente que é estar ao redor de você 
e suas histórias. Que fique sempre claro, 
o presente é pra ele e não pra você. 
Então, tenha uma vida bem feliz, cheia 
de amores realizados e sonhos lindos. 
Afinal, prometi isso a este querido livro."

Te amo. Mesmo que jamais esteja ao meu lado. 
(Sol.. Janeiro de 1989) 

Podem ter certeza que eu não sabia disso, nunca mais vi essa moça e, talvez em face da ignorância que me consumia naquele período, não consegui enxergar a  singeleza de tão belas palavras. Mas voltemos ao livro. Voltei a lê-lo recentemente, Um Copo de Cólera, é um livro diferente dos outros. Foi publicado em 1978 e é composto por sete capítulos, cada um deles com um único período e apenas um ponto final. 

A obra conta sobre a desavença entre os protagonistas, um homem e uma mulher. O homem não tem nome e não se sabe sua profissão. A mulher, também sem nome, é jornalista. Simbolicamente, o homem representa o próprio poder ( a história foi escrita na década de 70, em plena ditadura militar ), o dominador; a mulher, sua esposa, é o povo dominado e oprimido. Isso não significa que o autor tenha tido essa intenção. 

A história começa com um fato banal, quando ele se irrita por causa de formigas que estão destruindo arbustos que cercam a chácara. E aí se desentende com a mulher. Comparando, as formigas destroem a cerca e a vida desse homem. Em Um Copo de Cólera o protagonista não gosta de ver sua mulher conversando com os subordinados. Isso lembra a obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, quando o personagem Paulo Onório também queria que sua mulher falasse com os empregados. O casal representa a crise entre o homem e a mulher, nos pequenos conflitos do dia-a-dia que se tornam insuportáveis. Enquanto que na atividade sexual ela satisfaz o marido, sendo submissa, no debate ideológico é ela que domina, por ser jornalista e falar bem. Apesar das brigas, não há vencido e vencedor. No final do livro ele se encontra sozinho, já que ela vai embora. 

O primeiro e o último capítulos têm o mesmo nome ? A Chegada. Leva-nos a crer que o primeiro apresenta a visão masculina e o segundo, a visão feminina. O homem vê na mulher a figura de amante e de mãe, principalmente quando ela lava seus cabelos. Ela o vê como filho quando está deitado na cama, encolhido como um feto. O autor tenta equilibrar razão e emoção. Ele, mais racional, perde a razão em determinados momentos, enquanto ela se deixa dominar em outras situações. Ambos representam papéis que a sociedade estabelece: homem tem que pensar e agir de uma maneira; a mulher tem que representar o seu papel de mulher. 

Apesar de escrita na época de 1970, da ditadura militar, a obra é uma novela pós-modernista cuja história acontece hoje, amanhã ou pode ter acontecido no passado. 

A linguagem é carregada de termos eruditos, rebuscada (lembra a retórica barroca), mas em certos momentos o autor joga palavrões e termos coloquiais para representar bem o dia-a-dia desse casal. 

É um livro que pode ser lido em pouco mais de meia hora, e foi o que fiz. Se fosse para classificá-lo (que coisa inútil, não?), acredito que figuraria como uma novela, ou quem sabe um conto mais longo. Mas isso não faz a menor diferença. E o livro realmente começa neste tom, com uma habilidade para narrar impressionante. Depois vem esse bendito copo de cólera, quando um fato aparentemente irrelevante serve de catarse para sentimentos ocultados, mágoas e frustrações virem à tona, numa tour de force soberbo do escritor. Mais uma vez chama a atenção a velha história: a voz é das personagens ou do escritor? Não importa muito, elas se fundem e o que sobra é uma pequena pérola, uma obra que, sem dúvida alguma, pode ser utilizado, para além da inquestionável qualidade da trama, como fonte de estudo para aspirantes a escritores (e eu me incluo aqui).

A leitura desse livro é surpreendente pelo estilo diferente e pela forma interessante de retratar o cotidiano de um casal. Parece que o homem e a mulher estão vivos, prontos a saltar aos nossos olhos... 

Fica a dica, leiam "Um Copo de Cólera".. Logo depois aprofundem Gabriel Garcia Marquéz lendo: "Memórias de Minhas Putas Tristes". É isso, leiam, apenas isso! 

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Um comentário:

  1. Boa noite Alacir. Interessante sua fala do livro. E quanto a moça da dedicatória, espero que seja leitora do Blog . Já fiquei curiosa para ler e também a outra sugestão de leitura. Um grande abraço.

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