quinta-feira, 7 de março de 2019

Enem..Apenas Simone

PRAZER: SIMONE DE BEAUVOIR!


Por Alacir Arruda

Em épocas de "empoderamento feminino", fragilidade da Lei Maria da Penha, mulheres chefes de família e o absurdo das agressões que ainda persistem, é sempre importante debater o papel da mulher na sociedade. No livro "O Segundo Sexo", da  filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir (1908 - 1986)  encontramos a seguinte  expressão:  "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher".  Ao longo da história  a sociedade capitalista sempre recusou  uma essência primeira para o gênero feminino, em outras palavras, primeiro o ser existe, depois, em liberdade, exerce escolhas que vão criando a constitutividade político-discursivo-ideológica desse sujeito social, não importa se este ser nasce como um corpo dotado de genitálias masculinas ou femininas.

Qual a radicalidade desse princípio existencialista-marxista de que “a existência precede a essência”, quando vamos lutar por lugares outros para a mulher na sociedade? Exatamente o fato de que o lugar econômico-social-ideológico-político-discursivo da mulher é construído socialmente, logo, não passa de pura dominação ideológica querer traçar um destino e uma essência moral para a mulher se encaixar, destino e essência, estes, muitas vezes construídos sob a ótica de atender o interesse dominador daqueles que possuem corpos com genitálias masculinas. O que Simone Beauvoir anuncia é a radicalidade de que cada mulher singular é livre e responsável para criar sua própria moral existencial, bem como livre e responsável para lutar por espaços econômico-sociais que retirem a mulher da condição de corpo destinado a viver “supostas essências femininas” traçada pela ditadura dos machos.

Acreditar que existe, enquanto essência, um “lugar da mulher” na sociedade seria uma atitude comodista, subserviente e equivocada, retirando da mulher exatamente a sua única força capaz de criar seu próprio destino, a sua liberdade de escolha em traçar caminhos diferentes, inclusive os considerados “impossíveis para a mulher”. Portanto, o que existe, sim, é uma construção econômico-ideológico-jurídico-discursiva-social que, criada com base em opressões e dominações, tenta enquadrar a mulher em papeis não escolhidos por ela própria.

Estou com Simone Beauvoir, a mulher não tem que  seguir nenhuma “moral feminina”, por medo de deixar de ser mulher. Todas as morais criadas para a feminilidade, desde usar saia frufru a depilações e cirurgias plásticas aparentemente naturais para alimentar a sede de lucro das indústrias cosméticas, passando pela tortura de ser “a responsável pelos serviços domésticos” ou de ser “a responsável por cuidar dos filhos”, até ser o objeto sexual monogâmico do homem, não passam de “morais e essências construídas” que servem tão somente para criar um padrão do ser mulher na sociedade. E a quem interessa padronizar os corpos das mulheres ou padronizar esse jeito de ser mulher? Basta exercer a postura crítica que veremos a que serve cada “moral social” construída para a mulher. Existe toda uma parafernália ideológica para fazer a mulher acreditar que o “ser mulher” é algo eterno e imutável, quando tudo isso não passa de dominações de mau gosto que tiram toda a criatividade e toda liberdade da singularidade de cada mulher, colocando-a em lugares sociais perpassados por opressões cotidianas.

Até em brincadeiras, aparentemente inofensivas, como brincar de boneca, constrói-se um lugar para mulher na sociedade, como se o corpo feminino, desde criança, fosse incapaz de inventar seu próprio destino, tendo de resignar-se a cuidadora de bebês. Existem movimentos permitidos e movimentos proibidos para o corpo feminino, como se a mulher fosse incapaz de criar e assumir seus próprios movimentos corporais. Assim, sem direito à liberdade de movimentar o próprio corpo a seu bel prazer, é um passinho para, nesse jogo de dominação ideológica, tirarem da mulher a liberdade também de decidir sobre o próprio corpo, tornando-a um ser infeliz, pois um corpo escravizado não pode ser feliz. O corpo da mulher é cobrado a aparecer socialmente de acordo com determinados padrões de moda e beleza, como se a mulher tivesse de ser aquilo que estipulam para ela e não o que cada mulher singular estipula para si mesma.

À mulher também, estupidamente, coloca-se o fardo ideológico-econômico de cuidar dos filhos, como se a responsabilidade de procriar a espécie humana fosse exclusiva de um único corpo, o feminino. É absurdo o número de filhos morando apenas com as mulheres, enquanto os machos ficam soltos e livres para fazer outros órfãos. A que serve essa “moral da generosidade feminina” que a responsabiliza por cuidar moralmente dos filhos? Muito triste, não é verdade?. E pior, como o próprio Estado Capitalista Burguês é gerenciado sob a ótica dos machos, em uma compulsão pela economia de gastos, nunca foi prioridade absoluta a construção de creches diurnas e noturnas, onde os bebês e as crianças possam ser socialmente assistidos e cuidados. É um grande absurdo o Estado Capitalista Burguês deixar exclusivamente nas costas das mulheres a responsabilidade social-econômica por dar continuidade à espécie humana. 

À mulher, de um modo geral, “morais machistas” aparecem como sendo “essências”, ofuscando a liberdade da mulher em criar a singularidade de sua própria vida, conforme suas escolhas. À mulher, nascida economicamente no seio da classe trabalhadora, tanto pior. Não é apenas oprimida por uma moral machista que tenta impedir sua liberdade de construir a própria vida e de decidir sobre o próprio corpo. A mulher trabalhadora é, além de tudo, mais explorada pelos patrões do que os homens trabalhadores o são. Os patrões, usando da desculpa ideológica esfarrapada e antiga de que a mulher “produz menos, devido à menor força física”, aproveitam-se disso para extrair uma maior parcela de mais-valia da mulher trabalhadora. Lembrando que, no sentido marxista, “mais-valia é o tempo de trabalho não pago aos trabalhadores e às trabalhadoras”, justamente o tempo em que a mulher trabalhadora trabalha gratuitamente para gerar riquezas para os patrões, dando-lhes o chamado lucro. O que essa ideologia atrasada esconde é que hoje, com as diversas tecnologias, não faz diferença ter mais ou menos força física: a mulher consegue operar, com igual produtividade, qualquer trabalho que os homens executam. Por que a mulher trabalhadora não recebe salário igual por trabalho igual? Absurdos que o dia de luta internacional da mulher não pode deixar de denunciar.

A  pior das crueldades é a imposição que é  fruto dessa moral machista hipócrita e escravocrata, imputando uma falsa “moral feminina” a “ser seguida como essência” pelas mulheres, mas que, no fundo, tira a liberdade de a mulher decidir sobre o próprio corpo, oprimindo-a em cadeias ideológicas insanas, dezenas e dezenas de mulheres são assassinadas por dia nesse planeta, quando se recusam a manter relações afetivo-sexuais com determinados machos estúpidos. Este é o lado mais dramático e atroz dessa moral que tenta impedir a mulher de decidir e escolher o que fazer com o próprio corpo.

E aqui, para subverter essa lógica escravocrata e determinista, retomamos a radicalidade do princípio livre de Simone Beauvoir: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. E que cada mulher tenha essa coragem de ser livre, que cada mulher rompa com essa ideologia do “feminino” que se quer a-histórico e eterno. Não existe nada eterno e natural no que se refere ao lugar social das mulheres. A mulher é um ser social em construção e, em liberdade, escolhendo e decidindo sobre o próprio corpo, sem ceder nenhum milímetro às ideologias machistas-capitalistas-escravocratas que tentam aprisioná-las e explorá-las, deve ser a única dona e toda soberana do seu destino. Ser mulher livre é a possibilidade máxima a ser construída e vivida por todas as mulheres e por todos os homens que respiram a liberdade, sem jamais ceder a quaisquer práticas que cheirem opressão e exploração. O lugar da mulher livre é o mesmo lugar do homem livre:  qual seja, um mundo livre.

P.S:    Em 2015, aqui no Brasil,  Simone de Beauvoir  foi objeto de um intenso debate  em função do ENEM daquele ano  ter utilizado fragmentos de sua Obra " O Segundo Sexo" em uma  das suas questões. Religiosos conservadores (com certeza desconhecendo o contexto das obras  dessa pensadora) criticaram o INEP - que organiza o ENEM - por, segundo eles,  essa questão "  fazer apologia ao homossexualismo" .  Observem a que ponto chega a ignorância....

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2 comentários:

  1. Grande reflexão Alacir. Já li o texto várias vezes . Simplesmente adorei. Tenho certeza que várias mulheres estão diante de um 'espelho' neste momento. E acrescento mais diante de tanta humilhação, seja social ou de seus companheiros machistas muitas ficam em estado deplorável de 'miseria' psicologica e a lavagem cerebral e tao grande que muitas perguntam onde foi que errei? Além do sentimento de culpa por às vezes não dar conta de tanta responsabilidade que carregam nas costas. Parabéns pelo texto. Abraços

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    1. Professora..creio que pessoas como vc e outras guerreiras estão superando essa dicotomia relegada ao sexo feminino por uma sociedade anacrônica..abs

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