segunda-feira, 1 de maio de 2017

ENEM 2017- A atualidade brutal: Hannan Arendt

HANNAN ARENDT: QUANDO O MAL SE TORNA ALGO BANAL.


Por Alacir Arruda

Sempre fui um admirador inconteste da filósofa alemã, de origem judaica,  Hannan Arendt ( meus ex alunos que o digam). Hannan faz parte de um grupo de intelectuais, entre eles Schopenhauer e  Nietzsche, que eu julgo difícil de serem  ignorados, pois você pode até odiá-los ,porém, jamais  conseguirá ser indiferente a eles. 

Recentemente perdemos grandes nomes da nossa música e até alguns intelectuais e o comportamento da mídia diante de tais fatos deixam claro que: ou somos um pais sem memória ou,  simplesmente, perdemos a capacidade de se consolidar com a dor próximo, o altruísmo. Quando nem mesmo a morte de um ser importante para a cultura de um país é mais respeitada pelo povo,  isso é um  sinal de que a sociedade está doente.

Qualquer semelhança com o passado não é mera coincidência. A escalada do fascismo no século XX ocorreu de modo semelhante.  Por isso, mais do que nunca, é importante revisitarmos a história, para não repetirmos os erros do passado. A direita saiu do armário e perdeu completamente os pudores. A oposição não tem mais vergonha de estimular a violência contra  qualquer um que julguem ser contra suas ideias, sejam eles ciclistas, feministas, homossexuais etc.

O momento político atual é propício para assistir ao filme Hannah Arendt – Ideias que Chocaram o Mundo. Como ensinou a filósofa alemã, de origem judaica, e perseguida pelo nazismo, todas as sociedades fascistas têm algo em comum: a banalização do mal


A atualidade brutal de Hannah Arendt

O filme causa impacto. Trata-se, tema central do pensamento de Hannah Arendt, de refletir sobre a natureza do mal. O pano de fundo é o nazismo, e o julgamento de um dos grandes mal-feitores da época, Adolf Eichmann. Hannah acompanhou o julgamento para o jornal New Yorker, esperando ver o monstro, a besta assassina. O que viu, e só ela viu, foi a banalidade do mal. Viu um burocrata preocupado em cumprir as ordens, para quem as ordens substituíam a reflexão, qualquer pensamento que não fosse o de bem cumprir as ordens. Pensamento técnico, descasado da ética, banalidade que tanto facilita a vida, a facilidade de cumprir ordens. A análise do julgamento, publicada pelo New Yorker, causou escândalo, em particular entre a comunidade judaica, como se ela estivesse absolvendo o réu, desculpando a monstruosidade.

A banalidade do mal é o tema  central da análise Hannan, porém, considero  importante lembrar do Holocausto, como uma tragédia cuja dimensão trágica ninguém vai negar, e jamais esqueçamos  que esta guerra vitimou 60 milhões de pessoas, entre os quais 6 milhões de judeus. A perseguição atingiu as esquerdas em geral, sindicalistas ou ativistas de qualquer nacionalidade, além de ciganos, homossexuais e tudo que cheirasse a algo diferente. O fato é que a questão da tortura, da violência extrema contra outro ser humano, me marcou desde a infância, sem saber que eu mesmo a viria a sofrer. Eram monstros os que me torturaram com acusações  vazias e desprovidas de qualquer fundamento usando a mídia? Poderia até haver um torturador particularmente pervertido, tirando prazer do sofrimento, mas no geral, eram homens ( policiais)  como os outros, colocados em condições de violência generalizada, de banalização do sofrimento, dentro de um processo que abriu espaço para o pior que há em muitos de nós.

Por que é tão importante isto, e por que a mensagem do filme é autêntica e importante? Porque a monstruosidade não está na pessoa, está no sistema. Há sistemas que banalizam o mal. O que implica que as soluções realmente significativas, as que nos protegem do totalitarismo, do direito de um grupo no poder dispor da vida e do sofrimento dos outros, estão na construção de processos legais, de instituições e de uma cultura democrática que nos permita viver em paz. O perigo e o mal maior não estão na existência de doentes mentais que gozam com o sofrimento de outros – por exemplo uns skinheads que queimam um pobre que dorme na rua, gratuitamente, pela diversão – mas na violência sistemática que é exercida por pessoas banais.

Entre os torturadores que interrogaram na década de 70 os chamados, subversivos,  no DOPS de São Paulo,  tinha  um delegado que havia estudado no Colégio Loyola de Belo Horizonte, onde alguns interrogados também haviam estudado. Colégio de orientação jesuíta, onde se ensinava a amar uns aos outros. Segundo relato de Ladislaw um dos presos -que havia estudado com o delegado-  "Encontrei um homem normal, que me explicava que arrancando mais informações seria promovido, me explicou os graus de promoções possíveis na época. Aparentemente queria progredir na vida. Outro que conheci, violento ex-jagunço do Nordeste, claramente considerava a tortura como coisa banal, coisa com a qual seguramente conviveu nas fazendas desde a sua infância. Monstros? Praticaram coisas monstruosas, mas o monstruoso mesmo era a naturalidade com a qual a violência se pratica".

Segundo ainda Ladislaw, um torturador na OBAN (Operação Bandeirantes-SP) lhe passou uma grande pasta A-Z onde estavam cópias dos depoimentos dos seus companheiros que tinham sido torturados antes. O pedido foi simples: por não querer se dar a demasiado trabalho, pediu que ele visse os depoimentos dos outros, e fizesse o seu depoimento confirmando a verdades, bobagens ou mentiras que estavam lá escritas. Explicou a Ladislaw que escrevendo um depoimento que repetia o que já sabiam, deixaria satisfeitos os coronéis que ficavam lendo depoimentos no andar de cima (os coronéis evitavam sujar as mãos), pois veriam que tudo se confirmava, ainda que fossem histórias absurdas. Segundo o torturado,  se houvesse discrepâncias, teriam de chamar os presos que já estavam no Tiradentes, voltar a interrogá-los, até que tudo batesse. Queria economizar trabalho. Não era alemão. Burocracia do sistema. Nos campos de concentração, era a IBM que fazia a gestão da triagem e classificação dos presos, na época com máquinas de cartões perfurados. No documentário A Corporação, a IBM esclarece que apenas prestava assistência técnica.


Banalidade do mal: Panfleto atirado em frente ao velório do ex-senador José Eduardo Dutra, em Belo Horizonte, pede a morte de petistas 

O mal não está nos torturadores, e sim nos homens de mãos limpas que geram um sistema que permite que homens banais façam coisas como a tortura, numa pirâmide que vai desde o homem que suja as mãos com sangue até um Rumsfeld que, em 2007,  dirigiu uma nota ao exército americano no Iraque, exigindo que os interrogatórios fossem harsher, ou seja, mais violentos. Hannah Arendt não estava desculpando torturadores, estava apontando a dimensão real do problema, muito mais grave.

A compreensão da dimensão sistêmica das deformações não tem nada a ver com passar a mão na cabeça dos criminosos que aceitaram fazer ou ordenar monstruosidades. Hannah Arendt aprovou plenamente e declaradamente o posterior enforcamento de Eichmann. Eu estou convencido de que os que ordenaram, organizaram, administraram e praticaram a tortura devem ser julgados e condenados.

O segundo argumento poderoso que surge no filme, vem das reações histéricas de judeus pelo fato de ela não considerar Eichmann um monstro. Aqui, a coisa é tão grave quanto a primeira. Ela estava privando as massas do imenso prazer compensador do ódio acumulado, da imensa catarse de ver o culpado enforcado. As pessoas tinham, e têm hoje, direito a este ódio. Não se trata aqui de deslegitimar a reação ao sofrimento imposto. Mas o fato é que ao tirar do algoz a característica de monstro, Hannah estava-se tirando o gosto do ódio, perturbando a dimensão de equilíbrio e de contrapeso que o ódio representa para quem sofreu. O sentimento é compreensível, mas perigoso. Inclusive, amplamente utilizado na política, com os piores resultados. O ódio, conforme os objetivos, pode representar um campo fértil para quem quer manipulá-lo.

No 1984 do Orwell, os funcionários eram regularmente reunidos para uma sessão de ódio coletivo. Aparecia na tela a figura do homem a odiar, e todos se sentiam fisicamente transportados e transtornados pela figura do Goldstein. Catarse geral. E odiar coletivamente pega. Seremos cegos se não vermos o uso hoje dos mesmos procedimentos, em espetáculos midiáticos.

O texto de Hannah, apontando um mal pior, que são os sistemas que geram atividades monstruosas a partir de homens banais, simplesmente não foi entendido. Que homens cultos e inteligentes não consigam entender o argumento é em si muito significativo, e socialmente poderoso. Como diz Jonathan Haidt, para justificar atitudes irracionais, inventam-se argumentos racionais, ou racionalizadores. No caso, Hannah seria contra os judeus, teria traído o seu povo, tinha namorado um professor que se tornou nazista. Os argumentos não faltaram, conquanto o ódio fosse preservado, e com o ódio o sentimento agradável da sua legitimidade.

Este ponto precisa ser reforçado. Em vez de detestar e combater o sistema, o que exige uma compreensão racional, é emocionalmente muito mais satisfatório equilibrar a fragilização emocional que resulta do sofrimento, concentrando toda a carga emocional no ódio personalizado. E nas reações histéricas e na deformação flagrante, por parte de gente inteligente, do que Hannah escreveu, encontramos a busca do equilíbrio emocional. Não mexam no nosso ódio. Os grandes grupos econômicos que abriram caminho para Hitler, como a Krupp, ou empresas que fizeram a automação da gestão dos campos de concentração, como a IBM, agradecem.

O filme é um espelho que nos obriga a ver o presente pelo prisma do passado. Os americanos se sentem plenamente justificados em manter um amplo sistema de tortura – sempre fora do território americano pois geraria certos incômodos jurídicos -, Israel criou através do Mossad o centro mais sofisticado de tortura da atualidade, estão sendo pesquisados instrumentos eletrônicos de tortura que superam em dor infligida tudo o que se inventou até agora, o NSA criou um sistema de penetração em todos os computadores, mensagens pessoais e conteúdo de comunicações telefônicas do planeta. Jovens americanos no Iraque filmaram a tortura que praticavam nos seus celulares em Abu Ghraib, são jovens, moças e rapazes, saudáveis, bem formados nas escolas, que até acham divertido o que fazem. Nas entrevistas posteriores, a bem da verdade, numerosos foram os jovens que denunciaram a barbárie, ou até que se recusaram a praticá-la. Mas foram minoria.

O terceiro argumento do filme, e central na visão de Hannah, é a desumanização do objeto de violência. Torturar um semelhante choca os valores herdados, ou aprendidos. Portanto, é essencial que não se trate mais de um semelhante, pessoa que pensa, chora, ama, sofre. É um judeu, um comunista, ou ainda, no jargão moderno da polícia, um “elemento”. Na visão da KuKluxKlan, um negro. No plano internacional de hoje, o terrorista. Nos programas de televisão, um marginal. Até nos divertimos, vendo as perseguições. São seres humanos? O essencial, é que deixe de ser um ser humano, um indivíduo, uma pessoa, e se torne uma categoria. Sufocaram 111 presos nas celas? Ora, era preciso restabelecer a ordem.

Um belíssimo documentário, aliás, Repare Bem, que ganhou o prêmio internacional no festival de Gramado, e relata o que viveu Denise Crispim na ditadura, traz com toda força o paralelo entre o passado relatado no Hannah Arendt e o nosso cenário brasileiro. Outras escalas, outras realidades, mas a mesma persistente tragédia da violência e da covardia legalizadas e banalizadas.

Sebastian Haffner, estudante de direito na Alemanha em 1930, escreveu na época um livro – Defying Hitler: a memoir – manuscrito abandonado, resgatado recentemente por seu filho que o publicou com este título.3 O livro mostra como um estudante de família simples vai aderindo ao partido nazista, simplesmente por influência dos amigos, da mídia, do contexto, repetindo com as massas as mensagens. Na Alemanha da época, 50% dos médicos aderiram ao partido nazista.

Acredito que  próximo fanatismo político não virá disfarçado de bigode nem bota, nem gritará Heil... como os idiotas dos “skinheads”. Usará terno, gravata e multimídia. E seguramente procurará impor o totalitarismo, mas em nome da democracia, ou até dos direitos humanos.


Contato: agaextensao@gmail.com

Um comentário:

  1. Professor, não conhecia essa filósofa e resolvi aceitar sua sugestão e ver o filme,confesso que assisti duas vezes e me puno por nao ter conhecido essa figura antes,achei simplesmente fantastico essa pensadora e extremamente atual. Gostaria que me sugerisse algumas leituras sobre ela,se puder. Grata. Camila Randolf-DF

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