As regras costumam ser menos
perigosas do que a imaginação. Sob Renan Calheiros, porém, vigora nas sessões
do Congresso uma única regra definitiva: não há regras definitivas. Nesta
quarta-feira, a anomalia produziu uma cena deprimente. Deu-se na sessão
convocada para votar o projeto que legaliza o rombo que o governo abriu em suas
contas de 2014.
Aos olhos da oposição, Renan presidia
uma sessão ilegal. Faltava-lhe o quórum mínimo exigido pelo regimento. A certa
altura, o deputado Mendonça Filho pediu a palavra como líder do DEM. Renan
aquiesceu, acomodando Mendonça numa fila:
“Concedo a palavra, como líder, ao
deputado Cláudio Cajado, em seguida ao deputado Mendonça Filho, em seguida ao
deputado Paudernei Avelino”, disse o presidente do Congresso. “Na sequência, o
senador Romero Jucá (relator do projeto do remendo fiscal) vai ler um
requerimento que se encontra sobre a Mesa. E vamos começar a Ordem do Dia”.
Mendonça Filho dirigiu-se à tribuna.
Postado defronte do microfone, esperou pela conclusão da fala do colega Cláudio
Cajado. Ignorando-o, Renan anunciou: “Com a palavra o deputado Cláudio Puty”.
Petista do Estado do Pará, Puty alisou os tímpanos Renan, que vinham sendo
maltratados pelos oposicionistas havia quase uma hora: “Quero elogiar a sua
condução serena da sessão.”
Ainda na tribuna, Mendonça
abespinhou-se: “Vossa Excelência havia me concedido a palavra”, disse ele,
dirigindo-se a Renan. “Eu tenho preferência, como líder.” Renan subiu o timbre:
“Vossa Excelência pode tudo aqui, só não pode ficar aí, da tribuna, gritando.”
O líder do DEM dobrou o tom: “Posso!
Vossa Excelência está envergonhando o Congresso. Vossa Excelência é uma
vergonha para essa Casa. É uma vergonha! É uma vergonha para esse Parlamento!
Vossa Excelência venha me tirar daqui, da tribuna! Vossa Excelência está
pensando que vai mandar em mim da forma…”
Súbito, Renan cortou o microfone de
Mendonça, admoestando-o: “Vossa Excelência não pode ficar aí, gritando. Vossa
Excelência pode tudo. A democracia que Vossa Excelência quer e reivindica pode
permitir isso. Mas a democracia do Brasil não permite, não. Cale-se aí! Cale-se
aí!” Renan devolveu a palavra ao governista Cláudio Puty.
Transtornado, Mendonça marchou em
direção à poltrona do presidente do Congresso. Interpelou Renan cara a cara.
Dedo e língua em riste, abandonou o 'Vossa Excelência'. Bradou, sem
formalismos: “Me respeite! Me respeite! Me respeite! Me respeite! Não vai
mandar calar!” Em pé, no plenário, a bancada oposicionista solidarizou-se com
Mendonça. Os deputados gritavam: “Não vai calar ninguém! Não vai calar
ninguém!”
A atmosfera abrasiva perdurou por
arrastados 17 minutos. Pega daqui, capa dali o plenário foi ficando ainda mais
vazio do que no início dos trabalhos. E Renan, por mais que desejasse fazer
média com Dilma, com quem se reunira na véspera, teve de se render às
evidências. O problema do governo não era o barulho da oposição, mas o silêncio
do conglomerado oficial.
Foi como se o mutismo dos aliados de
Dilma gritasse para o Planalto: tudo bem, nós vamos aprovar a meia-sola que o
governo pede para tapar o buraco do Tesouro. Antes, porém, queremos saber que
espaço cada um terá na Esplanada dos Ministérios. Mestre na audição dos
silêncios do Legislativo, Renan entendeu o recado.
Percebendo-se
na condição de general sem infantaria, o presidente do Congresso encerrou,
finalmente, a sessão. E convocou a próxima batalha para terça-feira da semana
que vem. Com isso, concedeu cinco dias de prazo para que Dilma pacifique a
própria tropa. Serão dias de muito silêncio.
Antes que a ficha lhe caísse, Renan
ainda franqueou o verbo ao líder de Dilma na Câmara, deputado Henrique Fontana
(PT-RS): “Nós estamos enfrentando um problema, presidente, que não tem nada a
ver com a condução de Vossa Excelência. O que ocorre? Há uma vontade de
maioria, que faz uma escolha de política econômica.”
Fontana prosseguiu: A maioria
“entende que alterar a Lei de Diretrizes Orçamentárias é positivo para a
economia. Eu, por exemplo, estou aqui para votar com essa convicção. A bancada
do PMDB, do PSD, do PTB, de diversos partidos… Todos querem votar com esta
convicção”. Logo se verificaria que a convicção não se traduziu em quórum.
Porém…
O líder do Planalto resolveu fazer
“uma crítica respeitosa'' aos antagonistas do governo. Ralhou: “A oposição, ao
perceber que não tem os votos, tenta gritar no plenário. Lá na Comissão de
Orçamento, ela fez isso. Foi para a frente da Mesa do presidente, como quase
tentou fazer aqui, impedindo o presidente de presidir uma sessão. […] Quem é
contra pode obstruir e não votar. Mas não pode impedir a sessão de se
realizar.”
Fontana esticou a prosa: “Vou usar
uma palavra dura. A oposição não pode colocar o dedo em riste, a um metro do
presidente da Casa. […] Ou a ordem é como a oposição quer ou ela quer desordem.
Aí não funciona na democracia, presidente”. Dirigindo-se a Renan, o líder do
Planalto adulou:
“Presidente, Vossa Excelência não
precisa ouvir isso. Mas eu sinto a motivação de dizer, em nome da amplíssima
maioria desse plenário: Vossa Excelência está respeitando o regimento com toda
a paciência que a democracia exige no Parlamento. Peço à oposição que não suba
de dedo em riste, em volta da cadeira do presidente.”
As
palavras do líder de Dilma acenderam o pavio do líder do PSDB de Aécio Neves,
deputado Antonio Imbassahy (BA). “Quero me dirigir ao líder do governo”, disse
ele, achegando-se ao microfone. “As oposições não reconhecem no governo
autoridade moral para se dirigir a nós dessa maneira. Triste, deputado Fontana,
é o mensalão. Triste é ver líderes e ex-presidentes do seu partido presos na
Papuda. Triste, líder do governo, é a gente assistir às denúncias do petrolão.
Roubo, roubalheira, assalto! Saquearam a Petrobras. É isso, deputado Fontana,
que envergonha os brasileiros.”
O tucano Imbassahy bicou: “Nós não aceitamos
esse tipo de mensagem do líder do governo. Um governo que assaltou o país, que
envergonha com a maior história de corrupção da República.” Para encerrar, o
deputado reportou-se a Renan: “Solicito a Vossa Excelência serenidade e
equilíbrio, porque essa sessão, a continuar, será anulada. Anuncio que
recorreremos ao STF para pedir a anulação de uma sessão iniciada sem o quórum.”
Mais adiante, Mendonça Filho voltou
ao microfone: “Quero dizer a Vossa Excelência, senhor presidente Renan, que só
o povo de Pernambuco pode me calar, me retirando o mandato. Sou um parlamentar
de convivência democrática e respeitosa, inclusive com os adversários. Vivo
dentro de um Estado democrático, presidente. Que pressupõe respeito às leis e à
Constituição, respeito ao regimento”.
Mendonça também se dirigiu ao petista
Fontana: “O governo cumpre seu papel. Luta para aprovar o que acredita. Um
erro. Afronta a Lei de Responsabilidade Fiscal, avilta todos os compromissos
com o equilíbrio as contas públicas no país. Mas o governo, deputado Fontana e
presidente Renan, tem que agir dentro das regras do jogo democrático,
respeitando o regimento.”
O líder do DEM recordou a batalha da
noite da véspera: “Ontem, o Congresso viveu uma de suas páginas mais negras. O
regimento interno foi atropelado. Votamos matérias sem discussão, sem
encaminhamento, sem orientação, votamos 38 vetos numa única cédula de votação.
E hoje, a grande surpresa pra mim, presidente Renan, é que se repete a dose. O
governo não se satisfez. Ligou novamente a motoniveladora.”
Mendonça armou-se de ironia: “Nós
temos três regimentos: da Câmara, do Senado e do Congresso. Agora, convivo com
o regimento de Vossa Excelência —o regimento de Renan Calheiros, que a cada
instante se adapta à situação. Não dá para conviver democraticamente nesse
ambiente. Para respeitar a democracia tem que respeitar as regras. Não estou
aqui para diminuir Vossa Excelência. Mas ninguém, senador, deputado, homem
nenhum, me tira o direito de falar. Falo e falarei sempre. Essa prerrogativa
não foi dada por Vossa Excelência. Foi conferida pelo meu povo. O povo
pernambucano.”
Em resposta, Renan suavizou a voz:
“Respondendo ao deputado Mendonça Filho, com toda a humildade, a quem respeito
muito, quero lembrar que cheguei pouco depois de iniciada a sessão. […]
Deputado Mendonça, eu garanti a palavra a todos. Não estaria aqui, sentado
nessa cadeira, para atropelar o regimento do Congresso nem da Câmara nem do
Senado.”
Renan prosseguiu, pausadamente: “O
que nós precisamos compatibilizar, e a circunstância muitas vezes dificulta,
são os ânimos, para que cada um cumpra o seu papel. O presidente do Congresso
não é líder da bancada do governo nem representante da oposição. Temos que
interpretar o regimento. Peço até desculpas pelo excesso. Acho que todos temos que
pedir desculpas e levar adiante a sessão. Nesse momento em que peço desculpas
pelo excesso, faço um apelo para o bom senso e o equilíbrio.”
Sobrevieram mais meia dúzia de
manifestações. E Renan, finalmente, deu o braço a torcer. Reconhecendo o
crescente esvaziamento do plenário, encerrou o vexame.