O QUE ESTÁ
ACONTECENDO COM O EGITO?
Por
Alacir Arruda
Um país admirado pela sua cultura e
berço da nossa civilização, hoje vive dias de caos. O cristal egípcio rompeu-se. A “unidade” do
Egito – aquela cola patriótica e essencial que manteve o país unido desde a
derrubada da monarquia, em 1952 e o governo de Nasser – derreteu em meio aos
massacres, tiroteios e fúria, ontem no ataque brutal à Irmandade Muçulmana. Uma
centena de mortos – 200, 300 “mártires” [o número de vítimas continua subindo:
638, na quinta-feira à noite, segundo o New York Times] - não
faz diferença o resultado: para milhões de egípcios, o caminho da democracia
tem sido dilacerado entre balas e brutalidade. Os muçulmanos que buscam um
Estado baseado em sua religião poderão confiar nas urnas novamente?
Ajuda dos EUA: 1,3 bilhão
Em 1992, na Argélia; no Cairo em
2013 – e quem sabe o que acontecerá na Tunísia nas próximas semanas? – os
muçulmanos que conquistaram o poder, de forma justa e democrática através do
voto, foram em seguida derrubados do poder. E quem pode esquecer o bloqueio
brutal sobre Gaza quando os palestinos votaram – mais uma vez democraticamente
– para o Hamas? Não importa quantos erros a Irmandade Muçulmana tenha cometido
no Egito – nem quão promiscuas ou estúpidas fossem suas leis – o presidente
democraticamente eleito Mohamed Morsi foi derrubado pelo Exército. Foi um golpe de
Estado, e John McCain estava certo ao usar essa palavra.
A Irmandade, é claro, deveria há
muito tempo ter reprimido seu amor próprio e tentando manter-se dentro da casca
de pseudo-democracia permitida pelo Exército no Egito. Não porque fosse justo
ou aceitável, mas para não ser obrigada a retornar à clandestinidade, prisões à
meia-noite, torturas e martírio. Este tem sido o papel histórico da Irmandade –
com períodos de colaboração vergonhosa com ocupações britânicas e ditaduras
militares no Egito. O retorno à escuridão sugere dois resultados: que a
Irmandade será extinta em meio à violência; ou vai ter sucesso, em algum
momento distante, na criação de uma autocracia islâmica.
Os sábios da mídia fizeram seu trabalho
venenoso antes de o primeiro cadáver ser sepultado. “O Egito pode evitar uma
guerra-civil”? Perguntavam. Será que os “terroristas” da Irmandade Muçulmana
pode ser dizimada pelo exército? E aqueles que se manifestavam antes da
queda de Morsi? Tony Blair foi apenas um dos que falou sobre a importância de
evitar o iminente “caos”, ao conceder o seu apoio ao general Abdul-Fattah
al-Sisi. Cada incidente violento no Sinai, cada arma empunhada pelas mãos da
Irmandade Muçulmana vai ser usada para convencer o mundo de que a organização –
que na verdade é um movimento islâmico muito mal armado, e muito bem organizado
– era o braço direito da al-Qaeda.
A história pode enxergar de
outro modo. Será certamente difícil explicar como milhares – talvez milhões –
de liberais egípcios bem-formados continuaram a dar suporte incondicional ao
general, que passou boa parte do tempo após a queda do ditador Mubarak
justificando os teste de virgindade do Exército entre as manifestantes do
sexo feminino na Praça Tahrir. Al-sisi estará sobre pressão nos próximos dias;
ele que sempre foi supostamente simpatizante da Irmandade, embora a origem
dessa ideia possa ser o fato de sua esposa sempre ter usado o véu para encobriu
o corpo todo, deixando apenas os olhos aparentes. Muitos intelectuais da classe
média que deram seu apoio ao exercito, terão que espremer suas consciências em
uma garrafa para acomodar o futuro.
Poderia
Mohamed el-Baradei, Prêmio Nobel e especialista nuclear, a mais famosa
personalidade – aos olhos ocidentais, não egípcios – no “governo interino —
ter permanecido no poder? Claro que não. Ele teve que ir, pois ele nunca
desejou tal resultado, quando apostou seu poder político e concordou em
sustentar a escolha de ministros feita pelo Exército, depois do golpe no mês
passado. Mas o círculo de escritores e artistas que insistem em afirmar o golpe
de Estado como uma continuidade da revolução de 2011, terá que usar – depois do
banho de sangue e da renúncia de el-Baradei – alguma linguística bem
angustiada, para escapar da culpa moral.
Preparem-se,
é claro, para as habituais perguntas-jargões. Será que isso significa o fim do
Islã político? No momento, certamente; a Irmandade Muçulmana não terá
disposição para tentar outras experiências na democracia – uma recusa que é o
perigo imediato no Egito. Pois, sem liberdade, há violência. Será que o Egito
se transformará em outra Síria? Improvável. O Egito não é um Estado sectário –
nunca foi, mesmo com 10% dos seus habitantes cristãos –, nem inerentemente
violento. Nunca experimentou a selvageria das revoltas argelinas contra os
franceses, ou as insurgências sírias, libanesas e palestinas contra os
britânicos e franceses. Mas muitos fantasmas estarão curvarão suas cabeças
envergonhados, hoje. Entre eles, Saad Zaghloul, o grande advogado
revolucionário do levante de 1919. E o general Muhammed Neguib, cujas
exigências revolucionarias de 1952 são tão similares às exigências dos que se
reuniram na praça Tahir, em 2011.
Mas sim, algo morreu hoje no Egito. Não a
revolução, porque em todo o mundo árabe conserva-se íntegra — embora
ensanguentada — a noção de que os países pertencem aos povos, não a seus
governantes. A inocência morrem, é claro, tal como acontece após cada revolução.
O que expirou hoje foi a ideia de que o Egito era a mãe eterna da nação árabe,
o ideal nacionalista, a pureza da história segundo a qual o Egito considerava
todo o seu povo como seus filhos. Porque as vítimas da Irmandade – assim como a
polícia e os partidários do governo – são também filhas do Egito. E ninguém
disse isso. Eles haviam se tornado os “terroristas”, o novo inimigo do povo.
Esta é a nova herança do Egito.
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