Muitos filósofos desenvolveram teorias próprias em relação a morte, mas nenhum discorda que esse é o destino final de todo ser vivente e por isso, fonte de todas as nossas angústia, pois sabemos que estamos a caminho dela. A morte sempre foi a musa inspiradora da filosofia e por isso Sócrates diz que a filosofia é a “preparação para a morte”. Estranha idéia, mas verdadeira, essa de que se não morrêssemos não filosofaríamos. Pode-se acrescentar a essa verdade tantas outras, tais como: se não sofrêssemos não filosofaríamos; se não amássemos não filosofaríamos; se não admirássemos não filosofaríamos; se não nos espantássemos não filosofaríamos, etc. Schopenhauer nos diz, contudo, que a morte é a musa inspiradora da filosofia e sem ela seria difícil que se tivesse filosofado. É por conta disso que o filósofo não pode prescindir de a morte falar. E Schopenhauer o faz desde a perspectiva geral da sua filosofia, ou seja, desde a relação com a indestrutibilidade do nosso ser-em-si. É desde esse horizonte que a filosofia de Schopenhauer será uma metafísica consoladora diante da certeza da morte.
É no horizonte da metafísica da vontade que Schopenhauer irá transformar a consolação teológica da morte para uma consolação propriamente filosófica. E para isso se valerá da oposição entre a imortalidade da espécie e a mortalidade do indivíduo. O indivíduo morre, mas será imortal na espécie. O mundo é vontade e a vida é uma manifestação sua. A vida é a vida da espécie e o indivíduo é apenas um exemplar, uma amostra da própria espécie. Não é no indivíduo que a natureza e a vontade se interessa. Para este a natureza é completamente indiferente, a sua vida e a sua morte não o comovem (Schopenhauer, 2004, p.35). Para a natureza o que conta é a espécie e essa não morre. A morte do indivíduo é a morte da aparência e não da vontade em si, eterna na idéia da espécie. Por isso, quem vê além das aparências, em nada haverá de temer a morte, pois na imortalidade da natureza a individualidade deveria se enxergar e se consolar. Diz Schopenhauer:
Ora, o homem é a natureza, a natureza no mais alto grau da consciência de si mesma; se, portanto, a natureza é apenas o aspecto objetivo da vontade de viver, o homem, uma vez bem convencido disso, pode com razão sentir-se consolado completamente com a sua morte e a dos seus amigos: só tem que dar uma olhada para a natureza imortal: esta natureza, no fundo, é ele. O que é no fim das contas a vida? Um fluxo perpétuo da matéria através de uma forma que permanece invariável: do mesmo modo o indivíduo morre e a espécie não morre (Schopenhauer, 2001, 290- 291).
Fica claro na posição de Schopenhauer que a espécie representa o que para Platão representa a Idéia na relação com o individuo do mundo sensível. O mundo sensível, formado de indivíduos, participa do mundo da Idéia. Como o mundo das Idéias é eterno, o mundo sensível terá a sua eternidade na participação com o mundo ideal. Da mesma forma o indivíduo (João, Maria, José, etc.) morre, mas não morrerá a espécie humana e muito menos morrerá a vontade de viver da natureza que sempre de novo se reproduzirá e se eternizará nas espécies. Eis aí o consolo do homem diante do medo da morte. Não há porque temer a morte, afinal seremos eternos na natureza. Aliás, querer ser eterno individualmente é um contra senso. Se a vida é um fluxo perpétuo da matéria de uma forma que permanece eterna, então, entre a alimentação e a geração, por um lado, e as perdas de substâncias e a morte, por outro, há apenas uma diferença de grau. Isso significa que se nós não ficamos horrorizados pelas excreções e até somos indiferentes a sua perda, seria absurdo querer reter perpetuamente a nossa existência individual quando ela deve ser continuada por outros indivíduos. Assim, embalsamar cadáveres é tão absurdo quanto prestar culto a cada vez que nosso corpo se desfaz dos resíduos indesejados.
Na linha argumentativa de que a natureza se desinteressa pela vida do indivíduo, pelo fato de que a destruição de um tal fenômeno não afeta em nada a sua essência, Schopenhauer considera um absurdo a tese de que a vida é um aparecimento a partir do nada e mesmo assim terá uma continuidade individual eterna. Se não consideramos a vida de um elefante, de um macaco ou um cão com existência individual continuada, após o hiato da vida fenomênica, então como explicar que a vida do homem, supostamente também vinda do nada, permanecerá em sua individualidade e consciência eternamente? Não há como explicar, pois é um absurdo. O certo, diz Schopenhauer, é pensar a natureza não linearmente, tendo um começo do nada e um prolongamento infinito. O certo é pensar a natureza sob o símbolo do círculo, porque ele é o esquema do retorno. E o símbolo do retorno sinaliza a eternidade da natureza, aquilo que Schopenhauer denomina como palingenesia, ou o eterno retorno dos genes, pouco importando a efemeridade dos entes individuais, sejam humanos ou não. Diz Schopenhauer:
Contemplai no outono o pequeno mundo dos insetos: vereis como um prepara seu leito para dormir o longo e letárgico sono do inverno; o outro tece seu casulo para passar o inverno sob a forma de crisálida e despertar um dia, na primavera, mais perfeito e mais jovem; a maioria, enfim, que tenciona repousar no braço da morte, se inquieta para preparar um abrigo adequado para o seu ovo, de onde, um dia, ressurgirá sob uma forma nova. Que é isso senão a grande doutrina de imortalidade da natureza, que gostaria de nos ensinar que entre sono e morte não há diferença radical, mas que uma não é para a existência um perigo maior do que o outro? (Schopenhauer, 2004, p.39).
O mesmo acontece com o humano, posto que também é natureza. Não perceber a imortalidade na transformação da própria natureza é estar preso ao conhecimento fenomênico, e não da coisa-em-si. Desde a perspectiva da coisa-em-si a morte é uma ilusão, pois a morte para a natureza e para a espécie é como o sono para o indivíduo, ou o piscar das pálpebras, ambos não afetam o verdadeiro ser. E é na espécie, objetivação mais imediata da coisa-em-si, que a vida e a vontade de vida não cessam. Alguém poderia perguntar: mas e a consciência individual, o que comumente se chama alma, não é eterna? Schopenhauer responde: a consciência, o eu, nada mais é do que uma atividade cerebral, portanto, produto do orgânico e, como tal, começa e termina com ele. O corpo individual morre e é destruído e com ele a consciência, só não é destruída a vontade, da qual o corpo é obra. A distinção entre vontade e conhecimento, com a primazia da primeira, eis a filosofia de Schopenhauer. Erraram todos os filósofos, diz Schopenhauer, em “pôr no intelecto o princípio metafísico, indestrutível e eterno do homem: ele está exclusivamente na vontade, que é completamente diferente do intelecto” (Schopenhauer, 2004, p. 60). O que seja esse princípio imperecível não se pode explicar, diz Schopenhauer. Não é nem a consciência e muito menos o corpo sobre o qual repousa a consciência. “É, antes, o fundo sobre o qual repousa o corpo e a consciência junto com ele” (Schopenhauer, 2004, p. 60).
Contudo, a morte é percebida para o indivíduo como o maior dos males e seu temor afeta tanto o homem quanto o animal. E se afeta tanto o ser humano quanto ao animal, então é porque o medo da morte não depende do conhecimento. O medo da morte é intrínseco à vontade de viver e ao apego ilimitado à vida, fundo comum de todo ser vivente. O apego ilimitado à vida, o querer viver, a vontade de vida e, por conseqüência, o medo da morte, são completamente irracionais. O medo da morte não pode vir do conhecimento e da reflexão. O conhecimento, diz Schopenhauer, atua como antídoto ao medo da morte revelando o pouco valor da vida. Assim, “quando prevalece o conhecimento o homem avança ao encontro da morte com o coração firme e tranqüilo, e daí honramos sua conduta como grandiosa e nobre; celebramos então o triunfo do conhecimento sobre a vontade de vida cega” (Schopenhauer, 2004, p. 26). Na proporção inversa desprezamos o homem que se apega sem reservas à vida.