terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

PARA REFLEXÃO

Schopenhauer e a Metafísica consoladora da morte.
Alacir Arruda
Muitos filósofos desenvolveram teorias próprias em relação a morte, mas nenhum discorda que esse é o destino final de todo ser vivente e por isso, fonte de todas as nossas angústia, pois sabemos que estamos a caminho dela. A morte sempre foi a musa inspiradora da filosofia e por isso Sócrates diz que a filosofia é a “preparação para a morte”. Estranha idéia, mas verdadeira, essa de que se não morrêssemos não filosofaríamos. Pode-se acrescentar a essa verdade tantas outras, tais como: se não sofrêssemos não filosofaríamos; se não amássemos não filosofaríamos; se não admirássemos não filosofaríamos; se não nos espantássemos não filosofaríamos, etc. Schopenhauer nos diz, contudo, que a morte é a musa inspiradora da filosofia e sem ela seria difícil que se tivesse filosofado. É por conta disso que o filósofo não pode prescindir de a morte falar. E Schopenhauer o faz desde a perspectiva geral da sua filosofia, ou seja, desde a relação com a indestrutibilidade do nosso ser-em-si. É desde esse horizonte que a filosofia de Schopenhauer será uma metafísica consoladora diante da certeza da morte. 

É no horizonte da metafísica da vontade que Schopenhauer irá transformar a consolação teológica da morte para uma consolação propriamente filosófica. E para isso se valerá da oposição entre a imortalidade da espécie e a mortalidade do indivíduo. O indivíduo morre, mas será imortal na espécie. O mundo é vontade e a vida é uma manifestação sua. A vida é a vida da espécie e o indivíduo é apenas um exemplar, uma amostra da própria espécie. Não é no indivíduo que a natureza e a vontade se interessa. Para este a natureza é completamente indiferente, a sua vida e a sua morte não o comovem (Schopenhauer, 2004, p.35). Para a natureza o que conta é a espécie e essa não morre. A morte do indivíduo é a morte da aparência e não da vontade em si, eterna na idéia da espécie. Por isso, quem vê além das aparências, em nada haverá de temer a morte, pois na imortalidade da natureza a individualidade deveria se enxergar e se consolar. Diz Schopenhauer: 

Ora, o homem é a natureza, a natureza no mais alto grau da consciência de si mesma; se, portanto, a natureza é apenas o aspecto objetivo da vontade de viver, o homem, uma vez bem convencido disso, pode com razão sentir-se consolado completamente com a sua morte e a dos seus amigos: só tem que dar uma olhada para a natureza imortal: esta natureza, no fundo, é ele. O que é no fim das contas a vida? Um fluxo perpétuo da matéria através de uma forma que permanece invariável: do mesmo modo o indivíduo morre e a espécie não morre (Schopenhauer, 2001, 290- 291). 

Fica claro na posição de Schopenhauer que a espécie representa o que para Platão representa a Idéia na relação com o individuo do mundo sensível. O mundo sensível, formado de indivíduos, participa do mundo da Idéia. Como o mundo das Idéias é eterno, o mundo sensível terá a sua eternidade na participação com o mundo ideal. Da mesma forma o indivíduo (João, Maria, José, etc.) morre, mas não morrerá a espécie humana e muito menos morrerá a vontade de viver da natureza que sempre de novo se reproduzirá e se eternizará nas espécies. Eis aí o consolo do homem diante do medo da morte. Não há porque temer a morte, afinal seremos eternos na natureza. Aliás, querer ser eterno individualmente é um contra senso. Se a vida é um fluxo perpétuo da matéria de uma forma que permanece eterna, então, entre a alimentação e a geração, por um lado, e as perdas de substâncias e a morte, por outro, há apenas uma diferença de grau. Isso significa que se nós não ficamos horrorizados pelas excreções e até somos indiferentes a sua perda, seria absurdo querer reter perpetuamente a nossa existência individual quando ela deve ser continuada por outros indivíduos. Assim, embalsamar cadáveres é tão absurdo quanto prestar culto a cada vez que nosso corpo se desfaz dos resíduos indesejados. 

Na linha argumentativa de que a natureza se desinteressa pela vida do indivíduo, pelo fato de que a destruição de um tal fenômeno não afeta em nada a sua essência, Schopenhauer considera um absurdo a tese de que a vida é um aparecimento a partir do nada e mesmo assim terá uma continuidade individual eterna. Se não consideramos a vida de um elefante, de um macaco ou um cão com existência individual continuada, após o hiato da vida fenomênica, então como explicar que a vida do homem, supostamente também vinda do nada, permanecerá em sua individualidade e consciência eternamente? Não há como explicar, pois é um absurdo. O certo, diz Schopenhauer, é pensar a natureza não linearmente, tendo um começo do nada e um prolongamento infinito. O certo é pensar a natureza sob o símbolo do círculo, porque ele é o esquema do retorno. E o símbolo do retorno sinaliza a eternidade da natureza, aquilo que Schopenhauer denomina como palingenesia, ou o eterno retorno dos genes, pouco importando a efemeridade dos entes individuais, sejam humanos ou não. Diz Schopenhauer: 

Contemplai no outono o pequeno mundo dos insetos: vereis como um prepara seu leito para dormir o longo e letárgico sono do inverno; o outro tece seu casulo para passar o inverno sob a forma de crisálida e despertar um dia, na primavera, mais perfeito e mais jovem; a maioria, enfim, que tenciona repousar no braço da morte, se inquieta para preparar um abrigo adequado para o seu ovo, de onde, um dia, ressurgirá sob uma forma nova. Que é isso senão a grande doutrina de imortalidade da natureza, que gostaria de nos ensinar que entre sono e morte não há diferença radical, mas que uma não é para a existência um perigo maior do que o outro? (Schopenhauer, 2004, p.39).

O mesmo acontece com o humano, posto que também é natureza. Não perceber a imortalidade na transformação da própria natureza é estar preso ao conhecimento fenomênico, e não da coisa-em-si. Desde a perspectiva da coisa-em-si a morte é uma ilusão, pois a morte para a natureza e para a espécie é como o sono para o indivíduo, ou o piscar das pálpebras, ambos não afetam o verdadeiro ser. E é na espécie, objetivação mais imediata da coisa-em-si, que a vida e a vontade de vida não cessam. Alguém poderia perguntar: mas e a consciência individual, o que comumente se chama alma, não é eterna? Schopenhauer responde: a consciência, o eu, nada mais é do que uma atividade cerebral, portanto, produto do orgânico e, como tal, começa e termina com ele. O corpo individual morre e é destruído e com ele a consciência, só não é destruída a vontade, da qual o corpo é obra. A distinção entre vontade e conhecimento, com a primazia da primeira, eis a filosofia de Schopenhauer. Erraram todos os filósofos, diz Schopenhauer, em “pôr no intelecto o princípio metafísico, indestrutível e eterno do homem: ele está exclusivamente na vontade, que é completamente diferente do intelecto” (Schopenhauer, 2004, p. 60). O que seja esse princípio imperecível não se pode explicar, diz Schopenhauer. Não é nem a consciência e muito menos o corpo sobre o qual repousa a consciência. “É, antes, o fundo sobre o qual repousa o corpo e a consciência junto com ele” (Schopenhauer, 2004, p. 60). 

Contudo, a morte é percebida para o indivíduo como o maior dos males e seu temor afeta tanto o homem quanto o animal. E se afeta tanto o ser humano quanto ao animal, então é porque o medo da morte não depende do conhecimento. O medo da morte é intrínseco à vontade de viver e ao apego ilimitado à vida, fundo comum de todo ser vivente. O apego ilimitado à vida, o querer viver, a vontade de vida e, por conseqüência, o medo da morte, são completamente irracionais. O medo da morte não pode vir do conhecimento e da reflexão. O conhecimento, diz Schopenhauer, atua como antídoto ao medo da morte revelando o pouco valor da vida. Assim, “quando prevalece o conhecimento o homem avança ao encontro da morte com o coração firme e tranqüilo, e daí honramos sua conduta como grandiosa e nobre; celebramos então o triunfo do conhecimento sobre a vontade de vida cega” (Schopenhauer, 2004, p. 26). Na proporção inversa desprezamos o homem que se apega sem reservas à vida.



4 comentários:

  1. A filosofia de Schopenhauer é pessimista na teoria, mas otimista na prática. A sua tese que se aproxima muito das filosofias orientais, principalmente do budismo, ou seja, a realidade que vivemos não passa de uma mera representação, aparências.

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    1. sso mesmo Josi, Schopenhauer, apesar de acusado de pessimista, e na verdade um otimista quanto a existência humana. Seu livro mais famoso tem como título: " O Mundo como Vontade e Representação", no qual ele define exatamente isso que você propôs. Parabéns por gostar de Schopenhauer, o meu filosofo predileto...Abs

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  2. sim,concordo com a Josi vivemos em um mundo de mera representações,onde somos ensinados a agradar a sociedade em si.Alacir sou sua aluna apesar de te achar irreverente sou sua fá admiro seu conhecimento sua ousadia,mas ao mesmo tempo frágil por uma realidade da vida,entre viver ou morrer

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