O RACISMO E A POLÍTICA DE COTAS
Um dos grandes questionamentos modernos quanto a igualdade racial reside na “questionável” política de cotas do Governo Federal. Para muitos, o governo tenta resolver uma questão histórica e até antropológica com um decreto, para outros é o primeiro passo para a auto-afirmação do negro em uma sociedade claramente racista. No Brasil, não há uma verdadeira democracia racial, mas o fundamento para sua construção reside nos preceitos constitucionais que tornam, perante a lei, irrelevante a auto-classificação racial das pessoas e crime a discriminação. Se a aplicação da lei é falha, a solução não está em oficializar desigualdades, aplicando critérios legalmente diversos para negros e brancos.
As quotas partem do pressuposto de que os “negros” não estão conseguindo competir com os brancos no vestibular. De fato, isto é verdade na medida em que esta população enfrenta obstáculos sociais muito sérios na sua trajetória escolar, que dificultam o acesso ao ensino superior. Alguma coisa precisa ser feita para diminuir esta desigualdade. Mas a solução das quotas não se encaminha no sentido de propor uma ação afirmativa que permita aos brasileiros com ascendência africana superar deficiências do seu processo de escolarização e o estigma da discriminação mas a de reivindicar que, para os “negros”, os critérios de admissão precisam ser menos rigorosos. Segregam-se os mecanismos de entrada: um mais rigoroso, para brancos e orientais e outros menos rigoroso para “negros”. Por menos que se queira, as implicações negativas são inevitáveis: a universidade ficará dividida entre os alunos da quota, menos bem preparados, e os demais, que ingressam com uma formação melhor.
Não podemos admitir que as dificuldades de ingresso dos “negros” no ensino superior se devam a características genéticas dos descendentes de africanos que os tornem incapazes de atingir um bom desempenho escolar. Mas, ao oficializar a “raça” como critério de admissão, pressupomos que todos os portadores de traços “negróides”, mesmo os de família de faixa de renda mais elevada, filhos de pais mais escolarizados, e que tiveram melhores oportunidades de receber uma boa formação escolar, são igualmente incapazes de competir com os brancos e que por isso devem ser igualmente beneficiados pelo sistema de quotas. Fortalece-se, deste modo, a falsa identificação entre ascendência africana e inferioridade intelectual, ao pressupor que nenhum negro pode competir com os brancos. É o perigo deste tipo de generalização que tem levado muitos estudantes universitários negros a se oporem ao sistema de quotas.
Uma outra conseqüência negativa deste tipo de reivindicação é que ela de fato desvaloriza a boa formação escolar básica, como se ela não fosse necessária para o prosseguimento dos estudos. O importante parece ser conseguir um lugar na universidade e não criar oportunidades de formação que permitam às pessoas que são vítimas de discriminação, disputar um lugar na universidade. Esta desvalorização acarreta um risco: o de que esta distinção inicial se perpetue por todo o curso porque, infelizmente, a qualidade da formação escolar anterior é um fator que influi fortemente no sucesso escolar posterior tanto no caso dos brancos como no dos negros. Alunos que ingressam no ensino superior com sérias deficiências em sua formação, como as que referem à capacidade de compreensão de textos, de redação, de clareza na argumentação, de familiaridade com o método científico, de utilização do raciocínio matemático, encontram grandes dificuldades para conseguir um desempenho satisfatório nos cursos universitários.
Além disto, há também deficiências de informação na área das ciências, da literatura, da história e da geografia que limitam o horizonte cultural daqueles que não tiveram oportunidade de cursar boas escolas que precisariam também ser corrigidas. Para serem bem sucedidos, os alunos da quota menos bem preparados necessitariam de um programa paralelo que lhes permitisse superar essas deficiências de sua formação. Esta não é uma tarefa que as universidades possam desempenhar durante os cursos regulares, porque este trabalho exige competências específicas por parte dos professores e uma pedagogia adequada. Além do mais, isto poderia significar a formulação de cursos ou currículos específicos para os alunos negros, o que por sua vez, segregaria os estudantes universitários em programas para negros e programas para brancos. Solução muito melhor seria que esta compensação curricular fosse oferecida antes do ingresso no ensino superior e não depois.
Chegamos com isto mais perto das raízes do problema da desigualdade de acesso ao ensino superior e da formulação de ações afirmativas que permitam compensar o processo cumulativo da desigualdade da formação escolar prévia. Porque, se não há discriminação racial no vestibular, é preciso reconhecer que não podemos continuar a conviver com um processo educativo que, de fato, exclui a população de ascendência africana do acesso às universidades públicas.
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